Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Carta aberta a Jurema Werneck

Fiquei extremamente orgulhosa, ao vê-la naquele espaço composto majoritariamente por homens brancos, oriundos das classes abastadas

Créditos: Reprodução/Flickr Senado Créditos: Reprodução/Flickr Senado
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Belo Horizonte, 25 de junho de 2021

Querida Jurema,

Espero que esteja bem, apesar do momento desolador pelo qual passamos.

Já se vão quase 11 anos desde o dia em que estive com você. Era agosto de 2010. Incentivada pela professora Constancia Lima Duarte, minha mestra, minha luz, participei do Congresso Fazendo Gênero, na Universidade Federal de Santa Catarina. Quando olhei a programação e vi o seu nome, não pensei duas vezes. Corri para o auditório em que você ministraria uma palestra. Fiquei tão impactada com a sua formação: médica, mestra em Engenharia de Produção e doutora em Comunicação e Cultura. Ouvindo sua história, tendo conhecimento do seu trabalho teórico e de militância, tive a certeza de que precisava seguir em frente. E sigo, ainda influenciada por você.

Ando muito atarefada. Estou cursando o doutorado em Educação. Que o meu orientador não me ouça, mas que coisa horrível essa história de aulas remotas! Tem dias que me sinto tão esgotada, mas tento não reclamar, pois desejei muito estar nesse lugar. Além disso, sei que a maioria de nós ainda não pode exercer o direito de ingressar e permanecer em um curso de Pós-Graduação.

Nessa correria, não tive tempo de ler os jornais e saber que você estaria na CPI da Covid. Soube por meio de uma entrada rápida na internet. Estava concentrada na preparação da minha fala, pois era uma das convidadas de um evento em homenagem à professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, como você bem sabe, uma das intelectuais mais importantes desse País. Ao descobrir que você prestaria depoimento, parei tudo que estava fazendo para vê-la e ouvi-la. Não poderia perder esse momento histórico. Na verdade, ontem foi um dia duplamente histórico, com você na CPI, e Petronilha homenageada em vida.

Fiquei extremamente agradecida, orgulhosa, ao vê-la naquele espaço composto majoritariamente por homens brancos, oriundos das classes abastadas. Você que, conforme disse em uma entrevista recente à revista Marie Claire, enfrentou a fome, a pobreza, a morte precoce da sua mãe, o racismo e a lesbofobia. Lembrei de uma live da qual você participou no ano passado. Guardo sua fala categórica: “Foram os brancos que nos jogaram nessa situação. São eles que estão no poder. Quando olhamos as filas da Caixa, vemos que é uma maioria negra que está ali. São eles que decidem quando vai sair o dinheiro do auxílio emergencial, que decidem a política econômica. São eles que decidem quem tem o direito de viver e quem vai morrer”.

Depois de vários depoimentos levianos e desprezíveis, vê-la expondo de forma contundente a política genocida que tem nos empurrado para a morte, renovou minhas esperanças de que os culpados por essa carnificina serão punidos. Penso que se tudo isso ficar impune, é melhor esse país acabar e, quem sabe, começar tudo de novo. Os dados e as informações que você apresentou tornam tudo ainda mais explicitamente imoral, doído.

Ontem você disse que 305 mil mortes poderiam ter sido evitadas. Não consigo nem imaginar esse número. Como você também afirmou, se tivéssemos uma liderança nacional comprometida com o combate à Covid, tudo seria diferente. Isso quer dizer que milhares de crianças não estariam órfãs. Que a foto que viralizou no último final de semana, em que uma professora, ao ser vacinada, segurava um cartaz mostrando que num intervalo de 15 dias perdeu a avó, o pai e a mãe, provavelmente não existiria. Quer dizer também que não teríamos perdido tantos artistas importantes, como os músicos Ubirany, do Fundo de Quintal, e Aldir Blanc, o bailarino Ismael Ivo e os atores João Acaiabe, Edson Montenegro, Eduardo Galvão e Paulo Gustavo, entre muitos outros. Que tristeza tudo isso.

Em meio a tanta tristeza, tenho certeza de que sua presença na CPI e seu depoimento são provas irrefutáveis de que houve negligências ao longo desses 16 meses de pandemia. Está cada vez mais claro que deixar a população morrer tem sido uma escolha consciente. Como você bem lembrou, gente não é rebanho. Todos os dias me pergunto: como chegamos até aqui? Como as pessoas puderam fazer essa escolha por meio do voto? Talvez em razão da minha formação católica, pergunto se os que agem com escárnio e desprezo, diante da vida humana, dormem em paz.

Aproveito para lhe agradecer não só o dia de ontem, mas também tanta dedicação ao longo das últimas quatro décadas. Agradeço sua defesa intransigente do direito à cidadania das mulheres negras. Agradeço sua coragem de ser uma porta-voz da luta antirracista. Agradeço sua luta pelo fim do genocídio que mata um jovem negro a cada 23 minutos. Agradeço você pelo trabalho na Anistia Internacional. Agradeço sua disposição de seguir firme em busca de justiça por Marielle Franco e Anderson Gomes. Obrigada, Jurema. Por tudo e por tanto.

Reservei uma parede da minha sala para colocar quadros com fotos de pessoas importantes que tenho conhecido ao longo da minha caminhada. Lá estão Ailton Krenak, Pepe Mujica, Nilma Lino Gomes, Conceição Evaristo, Mart’nália e vários outros. Quando tudo isso passar, espero encontrá-la e fazer um registro com você. Colocarei nossa foto ao lado do quadro em que estou com a Benedita da Silva, nossa querida Bené.

Até breve, Jurema.

Receba o meu maior abraço.

Vamos em frente. Juntas.

Luana Tolentino

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