Augusto Diniz

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Jornalista há 25 anos, com passagem em diversas editorias. Foi produtor musical e escreve sobre música desde 2014.

Opinião

Carnaval de Salvador e Recife cultua o visitante e esquece as raízes

Folia de atrações nacionais se contrapõe à manifestação de origem local

O Carnaval acaba, começa a Quaresma
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A mistura musical com que se transformou o Carnaval de Salvador e do Recife cria questionamentos da eficácia cultural às cidades – se por um lado atrai público por conta das variadas atrações nacionais, favorecendo a indústria do turismo, estabelece distorções com relação ao protagonismo dos indivíduos da localidade na festa.

Um dos mais importantes compositores baianos, Roberto Mendes, afirma que o acontecimento com a socialite Donata Meirelles, fotografada em seu aniversário sentada num trono ladeada por mulheres negras de pé, imagem símbolo do sistema escravista, “sintetiza o Carnaval”.

“O Carnaval não respeita a regra e cultua a exceção”, diz, numa referência às atrações que se apresentam na folia baiana com grande destaque em relação aos agrupamentos carnavalescos ligados às comunidades.

O cantor e compositor cita o fato de Salvador ser a cidade que mais negros tem no País e cuja influência musical se origina muito do Recôncavo Baiano, um extenso repositório de cultura de matriz africana – mas que a folia hoje pouco se fundamenta nisso.

“No Carnaval, Salvador deixa de ser ela para receber visita. Salvador se arruma para receber visita. Até os grandes artistas baianos são visita, por que eles não vivem aqui”, afirma, destacando a falta de valorização do acervo musical local durante a folia.

“É uma grande quermesse. Movimenta dinheiro, mas não tem nada de cultural. É ponto de encontro, festa. Não gosto. Não me afino com o modelo. O Carnaval trabalha para que o visitante se sinta bem. Só isso”, diz.

O compositor, que tem várias canções gravadas pela conterrânea Maria Bethânia, no Carnaval de Salvador desfila apenas no Alvorada, bloco de samba e um dos mais antigos da capital baiana. Roberto Mendes é de Santo Amaro, no Recôncavo, e lá fica o restante da folia.

O Carnaval de Salvador diminuiu o número de blocos da chamada “axé music” nos últimos anos, fruto da crise econômica e da consequente dificuldade de vender abadás, mas, em outra vertente, teve aumento na procura de camarotes pelos foliões.

“Isso aponta para uma seletividade ainda maior (do Carnaval). Nem a classe média tem mais acesso”, destaca Roberto.

Marco Zero

O Recife homenageará no Carnaval 2019 dois sambistas locais: Gerlane Lops e Belo Xis. Trata-se de um reforço à estratégia de um carnaval multicultural na cidade, mas ainda com o frevo e o maracatu como exibição maior.

Mas isso não significa que as escolas de samba estejam em destaque na capital pernambucana.

“As escolas de samba desfilam em um gueto, fora do ponto central do carnaval do Recife”, ressalta Paulo Perdigão, sambista nascido no Rio, mas radicado na capital pernambucana desde 1994. Cantor, compositor e artista plástico, fundou há mais de uma década na cidade um projeto de samba autoral.

Leia também: Salvador é a meca negra: todo negro precisa ir pelo menos uma vez

“A abertura com maracatu no Marco Zero (praça no centro e palco principal da folia recifense) foi uma conquista de Naná Vasconcelos (músico pernambucano já falecido). Mas esse ano não terá. Colocaram cultura de periferia, como brega, rap, hip hop, fazendo uma grande mistura”, diz.

“Eles afirmam que 90% esse ano estão trabalhando com artistas locais nos pontos de Carnaval oficial”, conta, lembrando que também entrou na programação como músico.

Em Olinda, Paulo explica que o fato de a festa ter participação grande dos foliões e seus blocos de frevo, cria maior identidade local à manifestação.

Inclusão

O Carnaval é tratado pelo poder público, acima de tudo, como fomentador do turismo tanto em Salvador como no Recife. Há esforços pontuais no sentido de usá-lo como elemento de inclusão, desenvolvendo ações para fortalecer grupos afros, de afoxés, frevos, maracatus e outras vertentes durante o evento.

Mas são práticas aquém do que de fato necessitaria como instrumento de transformação local.

Destaca-se que agremiações carnavalescas nas comunidades tem papel fundamental de convívio social e cultural, muitas vezes na periferia, além de fomentador de atividades diversas ligadas à folia ao longo do ano, como música, produção e confecção de roupas e muitos outros aparatos.

A tentativa recente em Salvador de colocar blocos e artistas do axé music em cima de caminhões sem cordas – portanto, sem venda de abadás – nada mais é do que uma ação do velho grupo de domínio do Carnaval de manter a hegemonia.

No Recife, embora o Carnaval multicultural regional seja levado muito em consideração, identifica-se no poder público a premissa básica de inserir o “showbiz” na programação – basta uma olhada atenta no roteiro para se observar isso.

Resta saber se o modelo recifense se aproximará mais do padrão soteropolitano ou manterá esse difícil equilíbrio de apresentações musicais durante o Carnaval.

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