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Capitalismo em movimento

Convulsões de capitais em mercados emergentes não são defeitos secundários, mas a história principal

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Foto: Fernanda Carvalho/Fotos Públicas
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Ao ler a entrevista concedida por Paulo Guedes ao jornal O Estado de S. Paulo na ­terça-feira dia 8, ocorreu-me retomar considerações a respeito das marchas e contramarchas do capitalismo.

As concepções ossificadas – à direita e à esquerda – deixam de examinar o conjunto de relações que estruturam o capitalismo enquanto organização econômica, social e política singular, singular porque histórica. Essas relações se reproduzem num movimento incessante de diferenciação e autotransformação no interior de sua estrutura. Não há determinismo nem indeterminação: o capitalismo se transforma para assegurar a reprodução de suas estruturas. O Movimento do Mesmo em transformação é incompatível com as harmonias da rigidez cadavérica, embutidas nas hipóteses do liberalismo das cavernas.

O verdadeiro sentido da globalização é o acirramento da concorrência inserida em uma estrutura financeira global monetariamente hierarquizada, comandada pelo poder do dólar. Sob os auspícios do capital financeiro e de um sistema monetário internacional assimétrico, ocorreu a brutal centralização do controle das decisões de produção, localização e utilização dos lucros em um núcleo reduzido de grandes empresas e instituições financeiras à escala mundial. A centralização do controle impulsionou e foi impulsionada pela fragmentação espacial da produção.

Até os anos 1960 do século XX, a Revolução dos Gerentes estava comprometida com a obsessão pelo crescimento da grande empresa no longo prazo. Dotada de uma estrutura burocrática hierarquizada, a grande corporação abrigava com segurança os blue collars no chão de fábrica e, nos escritórios, acomodava a classe média white collars em bons empregos e saudáveis remunerações. Naqueles tempos, a cada 12 dólares gastos na compra de máquinas ou construção de novas fábricas, apenas 1 dólar era despendido com os dividendos pagos aos acionistas.

Nas décadas seguintes, a proporção começou a se inverter: mais dividendos, mais aquisições de empresas já existentes, menos investimento em nova capacidade e na contratação de trabalhadores. A associação de interesses entre gestores e acionistas estimulou a compra das ações das próprias empresas com o propósito de valorizá-las e favorecer a distribuição de dividendos. A isso se juntam a febre das fusões e aquisições, o planejamento tributário nos paraísos fiscais, o afogadilho das demonstrações trimestrais de resultados e as aflições das tesourarias de empresas e bancos, açoitadas com o guante da marcação a mercado.

No mesmo movimento, as empresas migraram para regiões onde prevalecem relações atraentes entre produtividade, câmbio e salários. Isso desatou, nos países de origem, a “arbitragem” com os ­custos salariais e estimulou a flexibilização das relações de trabalho, fenômeno agravado pela desqualificação e eliminação de trabalhadores, impostas pelo avanço das Tecnologias da Informação e pela automação na indústria e nos serviços.

A flexibilização das relações trabalhistas encolheu o crescimento da renda das famílias e subordinou os gastos de consumo ao endividamento. O circuito de formação da renda na economia como um todo começa a falhar. O desemprego e a queda dos rendimentos dos trabalhadores reduzem o gasto das empresas no pagamento de salários e desestimulam a aquisição de meios de produção de outras empresas.

Assim, a grande empresa contemporânea move a economia capitalista na direção da concentração da riqueza e da renda. Enredada nas armadilhas da acumulação financeira e enfiada no pântano da liquidez curto-prazista, empurra a economia global para a estagnação secular, falhando em sua capacidade de gerar empregos.

O artigo “Neoliberalism: Oversold?”, dos economistas do FMI, aborda os efeitos de duas políticas inscritas na agenda da globalização: a remoção das restrições ao movimento de capitais (liberalização das contas de capital) e a consolidação fiscal (“austeridade” para reduzir ­déficits fiscais e o nível da dívida). O estudo afirma que alguns influxos de capitais, como investimento direto estrangeiro, parecem impulsionar o crescimento no longo prazo, mas o impacto de investimentos de portfólio e, especialmente, de influxos de aplicações especulativas de curto prazo não estimula o crescimento nem garante um financiamento estável do balanço de pagamentos.

A ocorrência, desde 1980, de, aproximadamente, 150 convulsões com influxos de capitais em mais de 50 mercados emergentes credencia a reivindicação do economista de Harvard Dani Rodrik de que esses episódios “dificilmente são efeitos ou defeitos secundários nos fluxos de capital internacional, eles são a história principal”. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1195 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Capitalismo em movimento”

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