Gustavo Freire Barbosa

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Advogado, mestre em direito constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Coautor de “Por que ler Marx hoje? Reflexões sobre trabalho e revolução”.

Opinião

‘Cangaço Novo’ já nasceu clássica

No universal e no particular, a obra consegue resumir a atmosfera do banditismo social e suas contradições

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A pouco conhecida história do etíope Weldegabriel, o mais velho dos irmãos Mesazgi, é contada no primeiro capítulo do livro Bandidos, do historiador Eric Hobsbawm. Com o desmoronamento da ordem colonial italiana, a instabilidade social fez florescer o banditismo na região.

A obra pretende analisar o banditismo como fenômeno histórico, político, social e econômico – ciente de que qualquer análise que se limite a réguas morais será insuficiente para compreendê-lo. Um método influenciado por interesses meramente patrimoniais e pelo desejo inconfessável de posar de vestal pode até satisfazer quem os “cidadãos de bem”, mas em nada contribui para entender e lidar de forma satisfatória com o crime.

A história dos irmãos Mesazgi tem semelhanças com a história de figuras como Pancho Villa, um dos comandantes da Revolução Mexicana. Ou Robin Hood, o mítico herói inglês que roubava de aristocratas para dar aos pobres. Também remete ao nosso Lampião. Todos são também considerados bandidos, assim com os integrantes da família Vaqueiro, protagonistas da série Cangaço Novo, que acaba de estrear no Prime Video.

Cangaço Novo narra como Ubaldo (Allan Souza Lima), um ex-militar recém-demitido de um banco, vai de São Paulo a Cratará, sertão cearense e sua terra natal, para se desfazer das terras da sua família e conseguir dinheiro para arcar com o tratamento de saúde de seu pai de criação. Lá, reencontra-se com suas irmãs Dilvânia (Thainá Duarte) e Dinorah (Alice Carvalho, em atuação apoteótica), com quem se engaja em sucessivos conflitos familiares. Dinorah não está disposta a acolher o irmão que voltou para casa apenas para abrir mão das terras em que vive com Dilvânia e sua tia Zeza, vivida por Marcélia Cartaxo.

Ubaldo guarda uma semelhança física assombrosa com seu falecido pai biológico, Amaro Vaqueiro, uma figura mítica em Cratará, o que desperta afetos em pessoas como Jeremias (Enio Cavalcante), que, junto com Dinorah, integra um bando de assaltantes de banco. É Jeremias quem protege Ubaldo e amortece seus conflitos com Dinorah, abrindo as portas do grupo para ele.

A série é magistral em qualquer sentido: roteiro, fotografia, direção, atuações e produção. Em uma cena de confraternização, os assaltantes expõem seus sonhos e planos: Tirolesa (Joalisson Cunha) pretende abrir um salão de beleza; Sabiá (Adélio Lima) diz que vai mandar o dinheiro do assalto para ajudar a filha, que mora na capital; Jeremias não esconde a felicidade ao ser convidado por Ubaldo para trabalhar em sua loja de eletrônicos. Não há planos de ostentar e explorar. Há o desejo, legítimo, de querer o mínimo para sobreviver em condições de escassez e poucas oportunidades.

Tudo isso acontece em um contexto no qual o poder econômico, concentrado em uma oligarquia, tem seus naturais reflexos no poder político, em uma dinâmica coronelista de confusão do público com o privado que envolve o avanço sobre as terras de pequenos agricultores e a privação do acesso à água, direcionada a um empreendimento privado. A escassez, portanto, é artificial e decorre da apropriação privada de recursos que deveriam ser acessíveis a todos.

É nesse ambiente de privações que se encontra o bando de Dinorah e Ubaldo, longe de ser linear e ausente de contradições: nele há sexismo, machismo, mesquinhez, violências e ambições que perpassam as relações entre seus membros. Muitas dessas situações recaem sob Dinorah, a única mulher do grupo, ciente de que precisa ser enérgica para ser levada a sério. Distante de romantizações estéreis, a série acerta ao apontar que o grupo, fruto de seu tempo histórico, carrega consigo todas as mazelas deste.

Disse Marx que os homens e mulheres fazem sua própria história, mas não do jeito que querem, e sim sob as circunstâncias que se apresentam diante deles, transmitidas das gerações passadas. A tradição de Amaro Vaqueiro, representada em alguns momentos por sua velha arma, projeta-se simultaneamente como o sonho por dias melhores e como o pesadelo da proscrição, da morte e do sofrimento.

Hobsbawm explica que o banditismo social constitui um fenômeno universal encontrado em todas as sociedades baseadas na agricultura e compostas principalmente por camponeses e trabalhadores sem terras que são governados, oprimidos e explorados por latifundiários, bancos e políticos representantes do poder econômico. Uma vez que se trata de um fenômeno universal, ele está presente também em Caraúbas, sertão do Rio Grande do Norte, estado onde foram gravadas parte das cenas de Cangaço Novo.

O caraubense Valdetário Carneiro é considerado precursor do que se convencionou a chamar de “novo cangaço”. Do final para o início do século, seu bando tinha destaque nacional no jornalismo policial. A biografia Valdetário Carneiro: a essência da bala, dos jornalistas Rafael Barbosa e Paulo Nascimento, mostra como Valdetário buscou se afastar de confusões e rixas familiares e se dedicar ao ofício de mecânico, chegando a criticar seus parentes adeptos da vingança privada. Acusado de crimes que não cometeu, chegou a ser preso, algemado e exposto em praça pública por policiais. Em razão do seu sobrenome, passou a ser o suspeito automático dos roubos da região. Decidiu então fazer jus à fama, deixando, segundo seus biógrafos, “de ser o pacato sertanejo de origem simples para se tornar uma lenda”. Valdetário foi executado pela polícia em sua casa. Seu cortejo fúnebre atraiu dez mil pessoas.

Em nítida referência, a mãe de Dinorah se chama Valdetária. O caraubense também inspirou Alice Carvalho na construção de Dinorah. Nele se assenta a figura clássica e universal do bandido social. Afinal, no particular do sertão nordestino está a universalidade do capitalismo em suas periferias, marcadas pela exploração, pela miséria, pela concentração de riqueza e pela desigualdade. É dessas circunstâncias que surge o bandido não como simples violador da lei, mas como uma figura de protesto e rebelião – e, no banditismo social, uma figura de proteção dos fracos contra os fortes, dos pobres contra os ricos, dos que buscam justiça contra o governo dos injustos.

É o banco, que tira nossas casas, se apropria de nossas terras e nos enche de dívidas, que deve ser assaltado, não as pessoas, explicam Ubaldo e Valdetário, encarnando a epopeia mítica do bandido/herói. Em Mossoró, a menos de 80 km de Caraúbas, está enterrado José Leite Santana, o Jararaca, do bando de Lampião. É seu túmulo o que recebe mais visitas no Dia de Finados. A mesma Mossoró, em junho, celebra com espetáculo a vitória sobre o bando de Lampião, mas dedica a este muito mais simpatia que às forças legalistas que o derrotaram.

Cangaço Novo, no universal e no particular, consegue resumir a atmosfera do banditismo social e suas contradições sem apelar para arquétipos heroicos e clichês, com mocinhos e bandidos estilizados. Já nasceu clássica.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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