Opinião

“Canção de Amor para os Homens”

No momento em que o país é golpeado, como nunca, pelo fascismo mais deslavado, as esquerdas brasileiras não podem se dar ao luxo da divisão

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Sempre acreditei que são os livros a nos escolherem, não o contrário. Como em toda relação, demandam tempo de maturação, porque não podemos entender conteúdos para os quais não estejamos preparados. Nestes dias de quarentena, experimentei isso, mais uma vez. Olhando a estante, me deparei com um livro que ganhara, há 31 anos.

Como não costumo ficar com os volumes já lidos, isso queria dizer que não o lera. No entanto, o autor, o comandante Omar Cabezas, é tido por muitos – inclusive por mim – como o melhor romancista da Revolução Sandinista. O primeiro livro dele, “A Montanha é Muito Mais do que Uma Imensa Estepe Verde” tornou-se, de fato, o relato oficial do movimento guerrilheiro que levaria à vitória da revolução sandinista, em 19 de julho de 1979.

O livro que encontrei em casa é “Canção de Amor para os Homens”. Trata-se da sequência do primeiro volume, relatando a guerrilha nas montanhas do norte da Nicarágua até a vitória final. Embora o título possa soar machista – vale lembrar que o livro é dos anos 80 – o conteúdo nada tem de machismo, ao contrário.

Para minha maior surpresa, além do fato de ter deixado de lado uma leitura que, a exemplo do primeiro volume, revelar-se-ia maravilhosa, havia uma dedicatória do meu amigo Edgardo Matamorros, ex-vice ministro, que não podia ser mais emocionante e oportuna neste momento de tanta dor, neste país tão aviltado pelas consequências do golpe de estado de 2016: “Para recordarte que tambien perteneces a Nicaragua”. Na verdade, nunca me esqueci de ser também nicaraguense.

Lembro-me que, na despedida de Managua, após a festa na casa do embaixador do Brasil, ele gentilmente me conduziu até o carro e disse: “Espero que após estes dois anos sua paixão pelo que se passa aqui tenha mudado.” Eu respondi: “De fato, já não é mais paixão, mas amor”.

Creio que o livro não está traduzido. Porém, recomendo igualmente a leitura, até mesmo porque, ao final, tem um glossário delicioso das gírias nicaraguenses utilizadas pelo autor, muitas das quais eu não conhecia ou recordava.

Como toda gíria, traduzem muito da alma popular do país e como os sentimentos populares são expressos na linguagem. Uma verdadeira joia da cultura latino-americana e uma chave para o coração de um povo, a um tempo, tão sofrido e tão amoroso, como o nicaraguense.

Um dos pontos altos do livro consiste no processo de unificação das três frentes de luta, formando uma única frente de batalha e conduzindo ao triunfo da revolução. Como Jung percebera, o sentido dos acasos é a sincronicidade. Tudo está em relação, como nos aclarou a física quântica, inclusive a pandemia.

No momento em que o país é golpeado, como nunca, pelo fascismo mais deslavado, as esquerdas brasileiras não podem se permitir o luxo da divisão. Como bem observou o sociólogo Boaventura Souza Santos, a vitória dos partidos progressistas em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre – além das capitais progressistas do Nordeste – representará um contraponto importante à violência antidemocrática do fascismo.

Vale notar que se as classes médias podem suportar a ausência de políticas públicas, ainda que com grande dificuldade. O mesmo não se aplica às classes mais empobrecidas, pois essas, por definição, sobrevivem no limite entre a vida e a morte.

Nesse sentido, a renúncia do deputado Marcelo Freixo (PSOL) à pré-candidatura à prefeitura do Rio é um alerta e um chamamento aos partidos progressistas, para que busquem instalar uma mesa de diálogo, com vistas às próximas eleições municipais, sem pré-condições, excetuada a não-agressão. Com efeito, está mais do que evidente que esta será uma eleição nacional, em muito transcendendo o âmbito municipal. Os que se furtarem ao diálogo, terão de se ver com as classes empobrecidas e com a história.

À propósito, cito o comandante Omar Cabezas, no livro de referência: “A negação do homem em benefício dos demais é maior quando, tendo fome, desprende-se de parte do que é seu para dar a outro mais debilitado; nunca a comunhão dos homens é mais alta do que quando estão com fome.”

Se os verdadeiros lutadores são aqueles que tiram o pão da própria boca para alimentar os mais frágeis, não devemos hesitar, neste momento, em sensibilizar as forças democráticas para a formação de uma frente ampla, em que sacrifícios serão inevitáveis.

Concluo, citando mais uma vez Omar Cabezas: “…os grandes feitos, as grandes vitórias, os grandes êxitos, as vitórias finais e definitivas são construídas sobre a soma quotidiana das menores e às vezes – parece mentira – tarefas intranscendentes e pequenas. As grandes vitórias não são mais do que a somatória do êxito cotidiano, da realização cotidiana de pequenas tarefas que hão de ser feitas com entusiasmo, com amor, com paixão revolucionária. Do contrário, não há nenhuma vitória, pior, às vezes, há quem não dê importância às pequenas tarefas, esses estão perdidos, não conhecem ainda o segredo da vitória.”

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