José Dirceu

Advogado, ex-deputado federal, ex-ministro-chefe da Casa Civil e ex-presidente nacional do PT

Opinião

Caminhos para uma nova política nacional de segurança pública

De nada adianta a repressão pura e simples, ainda que necessária, sem uma política nacional, como foi a experiência do Pronasci

O presidente Lula e o novo ministro da Justiça e da Segurança Pública, Ricardo Lewandowski. Foto: Sergio Lima/AFP
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Volta ao noticiário a questão da segurança pública, seja pela saída de Flávio Dino do Ministério da Justiça e Segurança Pública ou pelos dramáticos e gravíssimos acontecimentos no Equador.

Há décadas oscilamos entre duas políticas públicas de segurança: a da Rota na Rua proposta pelo malufismo, uma versão moderna dos Esquadrões da Morte dos anos 60. Depois evoluímos, de novo com soluções de curto prazo e de efeito pirotécnico, para as ‘Tropas de Elite’, versão moderna dos delegados de Ouro, Escuderia Le Cocq e recentemente para as GLOs.

No meio tempo tivemos as UPPs, que depois descobrimos, como no caso da Tropa de Elite, que eram semente das soluções fascistas que Bolsonaro anunciava.

A Tropa de Elite se revelou um engodo, infiltrada e comprada pelo crime organizado, uma das razões para o fracasso das UPPs, unidades de polícia pacificadora. Nesse meio tempo, o crime organizado se nacionalizou e se internacionalizou, se infiltrou nas câmaras municipais, prefeituras, passou a financiar candidatos e eleições, nomear secretários e manter prefeitos sob sua influência, quando não governadores, e evoluiu para a fase empresarial como a máfia italiana, criando territórios e pequenos Estados paralelos, é a violência contra o Estado.

Agora surgiram as milícias, algumas de caráter religioso que reivindicam a bandeira de Israel, que vendem proteção e disputam territórios com o crime organizado, Primeiro Comando da Capital, Comando Vermelho, Amigo dos Amigos e outras dezenas de organizações em todo país, nos últimos anos se expandiram para o Nordeste e Norte do País.

Não pode haver territórios onde o Estado não entra ou não exerce seu poder político ou de polícia

O controle e domínio de territórios, a venda da prestação de serviços públicos, a exploração da venda de terrenos e apartamentos, a expansão de uma rede comercial e empresarial, o domínio do sistema penitenciário, a infiltração e corrupção das polícias, já eram razão para que os governos mudassem radicalmente suas políticas de segurança. Agora, a aliança entre o garimpo e a grilagem de terras com o crime organizado transnacional exige e impõe com urgência nacional uma nova política.

Antes, uma nota sobre a falência das políticas adotadas no Rio de Janeiro – e agora em São Paulo e praticamente em todo país – de simplesmente matar e ou assassinar via repressão massiva pelas PMs os chefes ou os chamados soldados do crime, como vimos no Guarujá, onde suspeitos foram torturados, assassinados. Prova do primitivismo e atraso. Na prática, simplesmente vingança e represália, que como vimos nos últimos 20 anos não resolvem nada. Pelo contrário, o crime organizado se consolidou e se tornou um caso de segurança nacional.

Foto: Sergio Lima/AFP

Política de segurança pública não é uma exclusividade das polícias civis, ou militares ou muito menos das FFAAs. Exige, em primeiro lugar, a criação de um ministério nacional. Embora a segurança pública seja constitucionalmente uma atribuição dos estados, o crime organizado se nacionalizou e se internacionalizou, e não há como o governo federal se ausentar do seu enfrentamento.

É evidente que, sem a articulação dos governos estaduais com o governo federal, não haverá avanços na luta contra o crime organizado. Não se trata de novas leis ou mais penas de prisão. Em primeiro lugar, é preciso reformar todo sistema penitenciário, com separação dos presos por penas, trabalho e estudo. Também não se pode misturar criminosos condenados por violência e ameaça grave, crimes hediondos, narcotráfico, crimes sexuais ou feminicídio com presos em geral, condenados por crimes menores.

É nas penitenciárias que o crime recruta novos soldados, dirige suas organizações e julga e condena desafetos ou dissidentes. Sem esse passo inicial, de nada adiantarão os avanços no combate ao crime organizado.

É fundamental que os entes federativos trabalhem conjuntamente para racionalizar o encarceramento, equilibrando as responsabilidades entre os diferentes poderes. Essa atuação inclui fortalecer os conselhos de comunidade na execução penal e os mecanismos de prevenção e combate à tortura. Além disso, é necessário reestruturar e fortalecer o programa nacional de apoio aos egressos do sistema prisional, expandir e normatizar a atuação da polícia penal. A retomada da discussão sobre penas alternativas é crucial para diminuir a superlotação carcerária e a influência das facções criminosas. Para isso, é essencial investir em recursos tecnológicos, inteligência e informação, além de reformar o departamento penitenciário nacional.

Há décadas oscilamos entre duas políticas públicas de segurança: a da Rota na Rua proposta pelo malufismo e as ‘Tropas de Elite’

O ideal seria uma só polícia, civil e militar. A primeira como sabemos é a polícia judiciária do Estado. E a segunda, uma  polícia preventiva e de repressão. Não sendo possível uma unificação, a integração se impõe. E quem deve fazê-lo são os governos estaduais e as secretarias de segurança pública mais o governo federal e seu ministério.

Está mais do que provado a ineficácia e ilegalidade criminosa das execuções e da repressão generalizada às populações dos territórios ocupados pelo crime. É preciso mudar radicalmente essa doutrina, começando pelas escolas das polícias, pelo estrito cumprimento da Constituição e pelo uso, por exemplo, das câmeras corporais e fortalecimento da autonomia e independência das corregedorias. A prioridade deve ser o trabalho de inteligência, o uso das estatísticas, a modernização da atuação policial via câmeras de monitoramento, a informatização de todo sistema de informações judiciais e criminais, o apoio e elevação da formação profissional dos policiais e sua remuneração e segurança social e de suas famílias.

Prevenção, integração e inteligência devem nortear a política nacional de segurança pública, que deve ter um olhar não só para os territórios, mas para as cidades onde as guardas municipais e metropolitanas são uma realidade.

Também é preciso uma nova política de valorização dos servidores da segurança pública. Um piso nacional às polícias estaduais e guardas civis municipais, um programa nacional de saúde mental aos servidores da segurança pública, uma escola nacional de formação de policiais estaduais e guardas municipais. Os servidores e suas famílias precisam de apoio e proteção do Estado no caso de invalidez ou morte.

Uma política nacional de segurança pública implica reconhecer o caráter do crime organizado e disputar com eles os territórios. Não pode haver territórios onde o Estado não entra ou não exerce seu poder político ou de polícia – policiamento permanente, a realização de obras sociais e de infraestrutura, uma atenção especial às mulheres chefes de família e vítimas da violência doméstica e feminicídios, auto-organização das comunidades e territórios em entidades e associações sociais e de apoio às polícias e às políticas sociais e de emprego e renda.

Foto: Caio Castor/Agência Pública

De nada adianta a repressão pura e simples, ainda que necessária, sem uma política nacional, como foi a experiência do Pronasci, assim como o apoio aos Estados a partir do Fundo Nacional de Segurança Pública, FNSP e do Plano de Ação de Segurança Pública a partir do Sistema Único de Segurança Pública, o que revela que as bases para essa cooperação a partir da Secretaria Nacional de Segurança Pública, entre os poderes da república já existem, assim como as penitenciárias de segurança máxima construídas pelo Depen, departamento do sistema penitenciário federal nas gestões petistas.

A experiência com as Garantias da Lei e da Ordem (GLOs) nos mostra que elas não são a solução ideal para a segurança pública. Devem ser reservadas apenas para situações de relevância nacional, como encontros de chefes de Estado ou eventos internacionais. Mesmo nesses casos, não seria necessária uma GLO, mas sim uma coordenação eficaz entre as Forças Armadas – Exército, Marinha e Aeronáutica – e as autoridades civis estaduais e federais. As GLOs representam uma anomalia constitucional e deveriam ser revogadas. Para situações extremas ou crises institucionais, já dispomos de mecanismos como o Estado de Sítio, o Estado de Defesa e a intervenção federal, que são mais do que suficientes.

Por determinação constitucional, a defesa das fronteiras terrestres, marítimas e aéreas do Brasil é responsabilidade das Forças Armadas. No entanto, o controle efetivo dessas fronteiras cabe a outras instituições. A Polícia Federal, como polícia judiciária da União, é encarregada da prevenção e repressão a crimes nas fronteiras terrestres. Idealmente, tais atribuições seriam transferidas para guardas de fronteira, costeira e de controle aéreo civil, seguindo o modelo de outros países, sejam eles continentais ou não.

Apesar disso, a participação das Forças Armadas permanece crucial, especialmente na prevenção e combate ao tráfico, contrabando e outros delitos transfronteiriços. A Polícia Federal, atuando também nas áreas marítima, aeroportuária e de fronteiras, complementa essa missão. Contudo, para uma atuação mais efetiva, as Forças Armadas necessitam reorganizar sua distribuição territorial, priorizando regiões estratégicas como o Norte e a fronteira sul do país.

Será preciso um estudo para a criação de uma Guarda Nacional de caráter civil, substituindo a Força Nacional

A implementação do SISFRON, um sistema integrado para monitoramento de fronteiras, equipado com sensores, câmeras, veículos, radares e estações meteorológicas, é fundamental. Este sistema não só garante o monitoramento, controle e mobilidade nas fronteiras, como também possibilita uma integração essencial com a Polícia Federal e governos estaduais.

O efetivo da Polícia Federal é insuficiente para policiar 16.886 quilômetros de fronteiras e 23.415 quilômetros de rodovias federais. Daí a necessidade da criação de um Guarda de Fronteira,  como temos em todos os países continentais. Na ausência dessa Guarda, a presença das Forças Armadas torna-se ainda mais crucial, como evidenciado pela implementação do SISFRON. Este sistema de monitoramento das fronteiras reforça a necessidade de reposicionar parte do contingente militar, atualmente concentrado no sul e sudeste, para áreas fronteiriças. Esta realocação é vital para uma vigilância mais efetiva e para o combate aos delitos transfronteiriços, complementando a atuação da Polícia Federal

A PF tem um papel especial na luta contra o narcotráfico e o contrabando de armas, ainda mais agora que em vários países há já uma epidemia de opioides, como o Fentanil, que nos Estados Unidos se transformou numa crise de saúde pública. Aqui temos a Cracolândia em São Paulo um exemplo da gravidade social da questão das drogas, de nada adianta criminalizar e penalizar o usuário até porque nosso sistema penitenciário está lotado e degradado. A Cracolândia exige repressão qualificada contra os traficantes que distribuem o crack e cuidado com os dependentes químicos como fez Haddad com o programa “De Braços Abertos”.

Não haverá a curto prazo solução para os graves problemas que enfrentamos. Toda e qualquer política nova deverá ser implantada a médio prazo. Não se reconstrói um sistema penitenciário capturado e degradado como o nosso em 1 ano, mas é necessário começar já, essa e todas as mudanças em nossa política de segurança antes que seja tarde.

Como estamos vendo no Rio de Janeiro e no Equador, trata-se de uma luta que não se resolve com a chamada “guerra às drogas”, como já ficou provado, o que exigirá uma mudança na política com relação as drogas e a certeza que sem um olhar nacional e integrado, social e político e sem a cooperação internacional e no país entre todos os poderes da república e todos os entes federais.

A tomada de consciência exigirá a criação de uma Força Tarefa Nacional Permanente e estudo para a criação de uma Guarda Nacional de caráter civil, substituindo a atual Força Nacional – ainda hoje um programa, e não uma verdadeira agência de segurança pública, portanto sem código de conduta, corregedoria e comando hierárquico adequado –, criando assim condições para o fim das GLOs.

Este movimento exigiria também uma revisão da Lei de Drogas e uma reestruturação do Sistema Único de Segurança Pública e do Fundo Nacional de Segurança Pública. Isso implicaria em uma coordenação mais ativa da União na política nacional de segurança pública, no estabelecimento de um programa nacional de policiamento comunitário, na prevenção do crime e na redução de mortes violentas, inspirada nas experiências do PRONASC. A unidade nacional deve ser prioridade absoluta de uma nova política nacional de segurança pública.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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