

Opinião
Cadáver insepulto
O estranho caso da força-tarefa que, mesmo morta, completa 10 anos de vida


Não há como falar da política brasileira recente sem se dedicar a compreender a Operação Lava Jato, que veio a público há dez anos e desencadeou uma série de eventos que, se não se reduzem aos seus desdobramentos, tampouco podem ser compreendidos a despeito da sua existência. O malfadado impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, a prisão do então pré-candidato à Presidência Luiz Inácio Lula da Silva e a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro, em 2018 – tudo tem a marca daquela força-tarefa cujo papel histórico é ainda hoje disputado.
A Lava Jato foi uma força-tarefa de combate à corrupção. Os investimentos dos governos do PT – pasmem! – no reforço da burocracia de controle redundaram na adoção de um modelo de combate à corrupção que dava primazia à via criminal e reservava protagonismo à polícia, ao Ministério Público, aos magistrados e aos tribunais. A primeira operação integrada foi deflagrada uma década antes da Lava Jato, que viria a se tornar a maior expressão do modelo de forças-tarefas de combate à corrupção no País. Nesse sentido, a Lava Jato é uma novidade institucional, mas ela é mais que isso.
A operação marcou um novo episódio da história política brasileira de instrumentalização da agenda anticorrupção que remete, ao menos, à breve experiência democrática que se desenhou entre 1945 e 1964, quando a corrupção permaneceu como um tema à disposição das disputas de poder e os impactos políticos de sua mobilização estratégica transbordaram para a dinâmica eleitoral, contribuindo para a ruína do regime democrático. A corrupção foi mobilizada principalmente pela UDN em associação ao trabalhismo, no governo de Getúlio Vargas, e à agenda desenvolvimentista na gestão de Juscelino Kubitschek, abrindo caminho para a vitória eleitoral de Jânio Quadros, de perfil popular e anti-establishment. Já com Jango à frente do governo, a bandeira anticorrupção ressurgiu em forte associação com o anticomunismo, o que contribuiu para a criação de um inimigo comum contra o qual (quase) tudo era permitido. E veio o golpe.
O fim da ditadura forjou uma nova institucionalidade, da qual brotou o presidencialismo de coalizão, que até recentemente induzia uma lógica particular de desvelamento da corrupção marcada por denúncias originadas de disputas intracoalizão que visavam menos os ganhos eleitorais associadas à eventual queda do governo, se não que buscavam ampliar o poder dentro do próprio governo. As CPIs seguiam a ser os espaços preferenciais de resolução dos conflitos políticos associados à agenda anticorrupção e a elite política detinha o controle sobre todo o processo, inclusive sobre os resultados.
A partir dos anos 2000, uma onda de reformas institucionais acabou por promover um novo modelo de combate à corrupção, centrado nas forças-tarefa. O novo quadro institucional favoreceu, sem dúvida, a atuação autônoma e discricionária dos agentes judiciais envolvidos diretamente com o combate criminal da corrupção.
Foi com a Lava Jato, contudo, que as disputas políticas em torno da agenda anticorrupção adentraram o sistema de justiça e a elite judicial passou a ditar com muita desenvoltura seus termos. As CPIs foram esvaziadas, cedendo espaço aos tribunais como arenas preferenciais de escoamento das denúncias, forjadas nas redes institucionais de controle político e combate à corrupção do Estado. Novos atores, novos fluxos, novos mecanismos e uma nova linguagem se estabeleceram, alçando para longe do sistema político – e, portanto, de qualquer resquício da expressão da soberania popular – a mais remota possibilidade de lidar com seus próprios problemas, de construir soluções para suas próprias crises.
A compreensão de que a Lava Jato é uma espécie muito particular de operação integrada anticorrupção é fundamental para avaliar o papel que desempenhou na história política nacional. As forças-tarefa morreram, mas a Lava Jato segue muito viva, ecoando nos discursos despolitizadores proferidos no Parlamento, tribunais ou telejornais, atualizados em impulsos desestabilizadores da democracia brasileira, não de todo afastados. Que não debute. •
Publicado na edição n° 1303 de CartaCapital, em 27 de março de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cadáver insepulto’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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