Gustavo Freire Barbosa

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Advogado, mestre em direito constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Coautor de “Por que ler Marx hoje? Reflexões sobre trabalho e revolução”.

Opinião

Brasil protecionista ou agrário-exportador?

No frigir dos ovos, a ‘Folha’ defende um país desindustrializado, e um país desindustrializado é, inevitavelmente, um país com empregos precários e sem horizontes de autonomia e independência

Presidente Lula participa da inauguração do Complexo Mineroindustrial da Eurochem, em Serra do Salitre, no Triângulo Mineiro. Foto: Ricardo Stuckert
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“Dentro de 200 anos, quando tivermos obtido do protecionismo tudo o que ele nos pode proporcionar, nós também adotaremos a liberdade de comércio”. A afirmação é de Ulysses Grant, então presidente dos EUA, e foi feita em 1875 contra a pressão britânica para que o país se abrisse à indústria inglesa. 

Com a vitória do Norte industrial contra o Sul agrário e escravocrata em 1865, a indústria norte-americana, ainda no berço, teria sido morta antes de engatinhar caso tivesse que lidar com a centenária indústria inglesa. Alexander Hamilton, um dos “pais fundadores” e responsável pelas políticas econômicas do governo de George Washington (1789-1797), teorizou acerca de medidas protecionistas e impôs severos obstáculos tarifários para salvaguardar a indústria de seu país. 

Os dois séculos de protecionismo estabelecidos por Grant terminam em 2075. Sabendo ou não disso, Elon Musk, proprietário da Tesla, manifestou a intenção de rifar a concorrência na produção de carros elétricos: em janeiro, disse que, se não forem impostas barreiras comerciais às montadoras chinesas, estas irão “demolir” suas rivais globais. Musk, malandro, quer que o governo dos EUA proteja sua empresa contra a chinesa BYD, que no último trimestre se tornou a maior vendedora de veículos elétricos do planeta.

Musk propõe o contrário do que os EUA impuseram ao mundo por meio do FMI e do Consenso de Washington, enfiando a cartilha neoliberal na goela tanto de países centrais como periféricos. Mas há certa coerência em seu apelo, e não apenas a partir de Grant, mas da história recente do seu país, onde, há menos de quinze anos, gastou-se mais de 1 trilhão de dólares para estatizar empresas do ramo de hipotecas e, assim, evitar o colapso do mercado imobiliário em razão da crise do subprime.

Ola Källenius, executivo da montadora alemã Mercedes Benz, discorda de Musk. Para ele, não deve haver tarifas adicionais sobre a importação de carros elétricos chineses, e sim uma menor taxação, pois a maneira mais apropriada de lidar com a competição asiática é pô-la de frente com “produtos melhores, tecnologia melhor, maior agilidade. Deixar a competição acontecer”.

Os dizeres de Källenius foram destaque no editorial da Folha de S. Paulo do último dia 16, que aproveitou a ocasião para criticar o protecionismo do governo Lula, qualificado como um “rótulo novo para um remédio antigo e comprovadamente ineficaz”. Para o editorialista, a ideia de autonomia industrial não passa de balela, uma promessa de “desenvolvimento local que nunca acontece” e que só prejudica o consumidor, submetido a “produtos tecnologicamente defasados e caros em troca de lorotas”.

O exemplo a ser seguido, prossegue, deveria ser os do agronegócio e da aviação, cujos crescimentos reputa à competitividade internacional. Os dados, contudo, apontam para outro sentido. Enquanto o agronegócio representa 7,9% do PIB, 1,5% da tributação, 3% da mão-de-obra empregada e 13,5% dos benefícios tributários, a indústria representa 12,9% do PIB, 31% da tributação, 15% da mão-de-obra e 12,5% dos benefícios fiscais.

Em síntese: a indústria emprega mais, produz mais, gera mais receita, representa uma maior parcela do nosso crescimento e ainda recebe menos incentivos tributários que o agronegócio, profundamente dependente de recursos públicos e linhas especiais de crédito subsidiado. Verdadeiras bolsas-latifúndio e bolsas-agrotóxico.

Quanto à aviação privada no Brasil, só com muita benevolência é possível tê-la como exemplo. Se o parâmetro do editorial é a satisfação do consumidor, está cada vez mais difícil achar alguém satisfeito com os serviços prestados por nossas companhias aéreas, marcados por passagens caríssimas, atrasos em reembolsos, cancelamentos de voos, ofertas não cumpridas e publicidade enganosa.

O editorial segue concluindo que o melhor incentivo à produtividade é abrir a economia ao choque competitivo externo, sendo este o motivo pelo qual a China teria tirado milhões de pessoas da pobreza. 

O editorialista, novamente, deveria ter ido mais devagar.

As reformas de Deng a partir de 1979 permitiram que o capital externo produzisse em solo chinês, mas desde que compartilhasse tecnologias e tivesse acesso limitado ao mercado interno. Anos depois, a China assimilou e aprimorou a tecnologia compartilhada e desenvolveu sua indústria, superando a produtividade ocidental e, por meio de um intenso planejamento central, direcionou a riqueza produzida para políticas que erradicaram a pobreza extrema em 2020. É improvável que liberais e militantes anti-protecionismo aprovem este modelo para o Brasil.

Em 1985, em seu discurso na cerimônia de posse do reitor da Universidade de Brasília, Darcy Ribeiro falou que “às vezes penso que somos, de certa forma, o que os Estados Unidos teriam sido se, na Guerra da Secessão, vencesse o Sul. Aqui, o Sul venceu. Nem houve guerra, tanta foi a conivência”.

No frigir dos ovos, a Folha defende um país desindustrializado, e um país desindustrializado é, inevitavelmente, um país com empregos precários e sem horizontes de autonomia e independência.

Um país agrário ou primário-exportador, enfim. Como o Sul estadunidense derrotado na guerra.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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