Opinião

Brasil é o único país em que a pandemia escalou a luta política

Não existe o menor vislumbre de um consenso político federal para o combate à pandemia

Jair Bolsonaro (Foto: EVARISTO SA / AFP)
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Todas as pandemias na história humana trouxeram consigo mais crendice. Parece que o novo nome para isso é fake news. No século 19 houve, em algumas regiões europeias, uma fervorosa convicção de que as vítimas de tuberculose deveriam ser espetadas com estacas, visto que, se assim não fosse, os doentes mortos reerguer-se-iam das tumbas para infectar os parentes.

A epidemia de covid-19 constitui uma nova oportunidade para as teorias mais esotéricas que buscam explicação e salvação para a doença, agora com a difusão maciça pela internet. Uma das mais fascinantes que li, não sei onde, é aquela que aponta a tecnologia 5G como a verdadeira responsável pela doença (tudo vem da China, numa atualização do outrora chamado mal amarelo). Para quem se ri dessas loucuras e acha que elas ficarão à margem de qualquer rastro de credibilidade, conviria que não se esquecesse que o presidente dos Estados Unidos, país mais poderoso do mundo, sugeriu, numa conferência de imprensa, a injeção com desinfetante para limpar pulmões infectados (fico sempre a pensar o que diria a nossa livre imprensa ocidental se tudo isso tivesse ocorrido com responsáveis chineses).

Talvez com algum exagero, a firme convicção de alguns dirigentes políticos sobre o uso da cloroquina pode ser adicionada à lista das psicoses coletivas. Neste capítulo da superstição, o Brasil não está só no mundo, mas não há dúvida de que ocupa um lugar de relevo na restrita lista de países em que os seus responsáveis políticos aspiram à condição de curandeiros, achando que a sua tarefa é impor protocolos de saúde e prescrição de medicamentos. Quem achou que Galileu foi o ponto-final na tutela política da ciência prepare-se para ver a história regressar a galope.

Outra caraterística histórica das infecções é a procura de bodes expiatórios. Algumas das vítimas das pragas europeias foram os culpados de sempre – judeus, maçons, ciganos, estrangeiros. As paranoias da conspiração e os mitos dos Superiores Desconhecidos que secretamente comandam os acontecimentos mundiais sempre encontraram firme terreno de desenvolvimento em momentos de aflição. Neste caso, ainda não está claro quem será responsabilizado, embora o “vírus chinês” citado pelo presidente dos EUA nos ofereça uma primeira indicação.

No Brasil, as forças politicas de plantão não terão dificuldade em encontrar os responsáveis – ou a China, ou os governadores, ou a Organização Mundial da Saúde, ou o marxismo cultural, ou o politicamente correto, ou todos ao mesmo tempo. A avaliar pelo que por aí vemos, vai valer tudo.

O que é, no entanto, concreto e bem definido na atual tragédia brasileira é a barafunda que tomou conta da sua política nacional de saúde. Não existe o menor vislumbre de um consenso político federal para o combate à pandemia. O Brasil não tem uma estratégia comum válida para todos os atores políticos que têm poderes executivos na área da saúde. Finalmente, não existe sequer um consenso dentro do governo federal quanto ao que fazer – vamos ao segundo ministro da Saúde demitido, desde que tudo começou. Esses três fatos tornam a história política da pandemia brasileira verdadeiramente singular no mundo.

A China, de partido único, impôs medidas radicais bem compreendidas pelas populações e pela comunidade científica do país. A avaliação do trabalho feito parece comparar bem com o resto do mundo. A Europa construiu a sua resposta baseada no melhor conhecimento médico e num acordo tácito entre governos e oposições – a luta política foi, de certa forma, suspensa durante a crise. Os EUA, embora com mais hostilidade e em ano de eleições, conseguiram aprovar uma resposta eco- nômica à crise que uniu os dois partidos e, apesar das estouvadas tiradas do presidente, as medidas implementadas resultaram, com pequenas diferenças, de um mínimo consenso que as instituições médicas norte-americanas conseguiram impor.

Ali não houve mudanças na liderança do Ministério da Saúde ou nas agências federais de controle de infecções. O Brasil é o único país do mundo em que a pandemia escalou a luta política – no interior do próprio governo, no Congresso, nos estados e até nas ruas, aos domingos.

Embora ainda em curso, a pandemia envolve uma competição política. O primeiro epicentro foi a China, depois a Europa, depois os Estados Unidos, agora a Rússia, e o próximo pode muito bem ser o Brasil. O número de mortos diários assusta e as reportagens televisivas impressionam. É difícil, no entanto, dizer que o pior já passou. A seguir à crise sanitária virão a crise econômica e o regresso da competição por mercados mundiais. Nessa altura, a avaliação do combate à infecção e a imagem do Brasil no mundo vai contar, e muito. Como vai acabar ainda não sabemos, mas uma coisa parece certa – a bagunça e a zaragata política terão um preço. Em vidas perdidas, em recuperação econômica e em reputação internacional. Não vai ser bonito.

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