Guilherme Boulos

[email protected]

Coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Foi candidato à Presidência da República em 2018, pelo PSOL.

Opinião

Boulos: a destruição da ciência no Brasil não é crise, mas projeto

‘Quando um país deixa de lado o investimento científico, ele compromete seu próprio futuro’, escreve o colunista

Foto: EVARISTO SA / AFP
Apoie Siga-nos no

Todos estamos acompanhando com apreensão o processo de vacinação contra a Covid-19 no Brasil. Há, infelizmente, real possibilidade de faltarem doses nas primeiras fases de imunização. E, mantendo-se o ritmo atual, o País demoraria quatro anos para alcançar a chamada imunidade de rebanho.

A falta de insumos de produção nacional, somada a uma política externa desastrosa, deixou o Brasil numa situação de dependência vexatória, com o pires na mão, implorando por alguns milhões de doses, insuficientes para atender a população.

Mesmo com instituições de excelência como o Instituto Butantan e a Fiocruz, o Brasil depende hoje do fornecimento da vacina de outras nações. Essa dependência não se explica pelo fato de o País não ser “desenvolvido”. A Índia tem um PIB per capita quatro vezes menor do que o nosso e tem planos de produzir 1 bilhão de doses. Isso não tem a ver apenas com a força econômica das nações, mas principalmente com o nível de investimento em pesquisa, ciência e inovação.

Parafraseando Darcy Ribeiro, a destruição da ciência no Brasil não é crise, mas projeto. O plano orçamentário para 2021 do governo Bolsonaro para o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações prevê cortes de até um terço do que receberia no ano de 2020, de 11 bilhões para 8 bilhões de reais. Será o quinto ano consecutivo de queda no número de bolsas científicas federais.

As instituições de excelência vêm sendo sucateadas. A Fiocruz é um dos maiores exemplos do potencial que o Brasil teve. Desde 1937, fabrica a vacina contra a febre amarela usada no mundo todo. Desde os anos 1980, os laboratórios públicos começaram a ser reequipados e reestruturados, com o objetivo de tornar o Brasil autossuficiente na produção de vacinas. Instituições como a Fiocruz, o Butantan e o Instituto Vital Brazil fizeram parte desse processo.

Hoje, o Programa Nacional de Imunizações do SUS tem a maior parte das doses vindas desses laboratórios. Mas, infelizmente, a nossa ciência e tecnologia tem sido forçosamente parada no tempo pelo abandono. E isso, verdade seja dita, vem de antes de Bolsonaro, que apenas aprofundou o desmonte.

Com a redução dos investimentos a partir de 2014, o País foi perdendo a capacidade de fabricar suas vacinas do início ao fim. Hoje, para produzir a maior parte das mesmas, precisamos importar o Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA).

A Índia é o exemplo oposto. Produz hoje metade das vacinas do mundo. Está entre as três maiores nações em áreas como química, telecomunicações e ciência da computação. No fim da década de 1990, gastava apenas perto de 0,65% de seu PIB em pesquisa e desenvolvimento. Entre 2008 e 2018, eles simplesmente triplicaram esse valor em investimento público. Aliás, não só lá, mas em todos os países que deram saltos científicos, o investimento do Estado na área sempre foi decisivo.

Pesquisa e inovação não funcionam com a lógica do curto prazo, que define as grandes corporações, voltadas ao rendimento para os acionistas. Nesta lógica não cabem investimentos sem retorno imediato, justamente aqueles que caracterizam o processo de inovação. São anos de pesquisa para um resultado sempre incerto e com ganhos frequentemente distantes. Quem assume historicamente os riscos da criação científica é o Estado, nas universidades públicas, nos centros de pesquisa e laboratórios. Ainda assim, os ganhos e patentes acabam levados pela iniciativa privada.

Como demonstra Mariana Mazzucato no brilhante livro O Estado Empreendedor, o algoritmo de buscas do Google foi inventado quando seus criadores eram doutorandos em Stanford e trabalhavam num projeto de pesquisa financiado pela Fundação Nacional de Ciência dos Estados Unidos.

Antes de se tornar uma empresa de capital aberto, a Apple recebeu 500 mil dólares de um fundo de incentivo a pequenas empresas do governo norte-americano. E a assistente virtual Siri surgiu de um projeto financiado pelo Departamento de Defesa. Pasmem, o iPhone – tornado símbolo das maravilhas do capitalismo liberal – também é fruto de dinheiro público.

Quando um país deixa de lado o investimento científico, ele compromete seu próprio futuro. Em cada canto do Brasil, quantos cientistas e gênios foram desperdiçados pela falta de investimento em educação e ciência nas últimas décadas? Certamente, tínhamos potencial para liderar as pesquisas de vacinas para a Covid-19. Mas hoje o País depende de um governo vergonhoso e é duramente afetado pelo sucateamento de suas instituições de excelência, apesar do esforço heroico da comunidade de cientistas. A crise da vacina é um dos preços que pagamos pela perda de rumos de um projeto de nação.

Publicado na edição n.º 1143 de CartaCapital, em 5 de  fevereiro de 2021.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar