Aldo Fornazieri

Cientista político, autor de 'Liderança e Poder'

Opinião

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Boric representa a inovação. Lula, a reconstrução

O presidente eleito no Chile saiu do desconhecido para se tornar presidente. O petista apoia-se em vasta popularidade para retornar à Presidência

Boric representa a inovação. Lula, a reconstrução
Boric representa a inovação. Lula, a reconstrução
Transição. O jovem Boric ocupou o vácuo da centro-esquerda, que não enfrentou os problemas históricos
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As linhas das eleições rea­lizadas no Chile em 2021 e aquelas que se rea­lizarão no Brasil em 2022 são mais paralelas do que interseccionais. Existem mais diferenças do que semelhanças. Os dois países atravessaram ditaduras. A do Chile foi unipessoal. A brasileira teve vários ditadores. Pinochet foi muito mais brutal do que os generais brasileiros. O Brasil fez uma transição com uma Constituinte e com uma Constituição democrática. O Chile só agora começa uma Constituinte e elabora uma Constituição pós-ditadura.

A lista das dessemelhanças é grande, mas nos concentremos nas eleições. A provável vitória de Lula será fruto de um processo lógico da política. Enquanto líder, Lula projetou sua liderança nacional ainda como sindicalista, fundou um partido de massas, foi um dos artífices da redemocratização, concorreu a quatro eleições presidenciais para vencer, saiu da Presidência com uma avaliação extraordinária, viu o impeachment da Dilma Rousseff e terminou preso. Com a anulação dos processos, readquiriu a condição de ser candidato no contexto do desastre absoluto do atual governo.

Gabriel Boric nasceu em 1986, estudou Direito e sua formação política deu-se no pós-Guerra Fria. Tornou-se líder estudantil e presidiu a Federação dos Estudantes da Universidade do Chile ao derrotar Camila Vallejo, que concorria à reeleição e era ligada à Juventude Comunista do Chile. Camila havia se projetado como a líder das manifestações estudantis de 2011. Coube a Boric liderar a segunda parte dos protestos que continuaram em 2012.

No movimento estudantil e na vida parlamentar, Boric agiu por fora dos partidos. Integrou o grupo Estudantes Autônomos e, depois, elegeu-se­ deputado em 2014, como candidato independente. Reelegeu-se em 2017 da mesma forma. Na Câmara dos Deputados deu prioridade ao trabalho em Comissões de Direitos Humanos e Povos Indígenas, Zonas Extremas da Antártida e Trabalho e Previdência Social. Inscreveu-se como candidato a presidente em fevereiro de 2021. Mas, como existiam vários grupos de esquerda que pretendiam lançar candidatos, formou-se uma coalizão de grupos e partidos chamada de Apruebo Dignidad. Para definir o candidato da coalizão foi feita uma prévia interna, na qual Boric venceu o prefeito da Ricoleta (uma comuna de Santiago), Daniel Jadue, que liderava a corrida presidencial em algumas pesquisas.

O resto da história é mais conhecido. No primeiro turno, o candidato de extrema-direita, José Antonio Kast, fez 27,91% dos votos e Boric, candidato de uma coalização chamada Convergência Social, fez 25,83%. A vitória de Boric no segundo turno foi elástica: 55,87% contra 44,13% de Kast.

Qual é a conclusão dessa breve síntese? Resposta: Boric é um vencedor improvável. Lula, por sua vez, é o provável vencedor. Boric saiu do desconhecido para se tornar presidente. Lula apoia-se em vasta popularidade para retornar à Presidência.

No Chile são dois fatores principais que explicam a vitória de Boric: 1. A crise dos partidos tradicionais de centro-esquerda, Partido Socialista e Partido Democrata Cristão, que formaram a Concertación e governaram o Chile de 1990 a 2010 e voltaram com Michele­ ­Bachelet em 2014. Os partidos de direita, que estiveram no poder nos dois mandatos de Sebastián Piñera, também estão em crise, o que permitiu a ascensão de Kast. 2. Um processo vitorioso de manifestações e lutas populares que abarca as mobilizações estudantis de 2011 e 2012 e os grandes protestos de 2019 e 2020 que levaram à convocação da Assembleia Constituinte.

Tanto os governos de centro-esquerda quanto os de direita, no Chile, não resolveram questões sociais graves, ­como os problemas previdenciários e de aposentadoria, de acesso às universidades e de baixos salários, saúde pública etc. As administrações da ­Concertación, tal como os governos do PT no Brasil, se caracterizaram por um reformismo fraco, para usar um termo cunhado por André Singer. O reformismo fraco pode ser caracterizado como ausência de reformas que removam, de forma estrutural, os principais mecanismos que geram a desigualdade e impedem a garantia de direitos. As políticas sociais focadas, embora necessárias, não resolvem esse problema.

No Brasil, as esquerdas têm acumulado derrotas: queda de Dilma, prisão de Lula, reformas trabalhista e da Previdência, fracassos do Fora Temer e Fora Bolsonaro, entre outros. A capacidade de mobilização é frágil. A Operação Lava Jato e o impeachment de Dilma não produziram apenas uma crise no PT, mas em todo o sistema partidário. A eleição de Bolsonaro foi consequência dessa crise.

O desastre do governo Bolsonaro, contudo, permitiu uma recuperação, principalmente do PT, mas também dos outros partidos. No Chile, diversamente, a crise social e dos partidos proporcionou a emergência de novos movimentos políticos autônomos e de uma nova esquerda, que dirigiram os protestos e venceram eleições. Boric foi eleito como presidente da inovação e da mudança. Lula deverá ser eleito como presidente da restauração e da reconstrução. •


*Professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1190 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE JANEIRO DE 2022.

CRÉDITOS DA PÁGINA: MARTIN BERNETTI/AFP

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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