Bolsonaro é o último protagonista de um Brasil que caminha em busca do passado

O ex-capitão não está aqui por acaso a nos punir com seu palavreado tão manquitolante quanto demente

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Um colega de colégio certo dia afirmou: Deus é brasileiro”. Formado no primário pelas freiras marcelinas, sentenciei com algu- ma severidade: “Deus é de todos”. O colega retrucou: “Então me explique por que Cristo nasceu em Belém”. Naquele momento, a informação pareceu-me irretorquível. Mais tarde entendi que a natureza tinha sido excepcionalmente dadivosa com o Brasil.

Acho que a única esperança que nos sobra é confiar nos desígnios do destino, os mesmos que em vão vocacionaram o País para a grandeza não previam a medievalidade da situação atual a nos dividir entre casa-grande e senzala, entre ricos e pobres, a ponto de nos tornar a nação mais desigual do planeta. Sobra a certeza. Bolsonaro somente é possível por ser, ele sim, brasileiro. Único ele e único o país que ainda pretende governar.

Jair Bolsonaro não está aqui por acaso a nos punir com seu palavreado tão manquitolante quanto demente. Ele não passa de último elo de um enredo protagonizado por governantes incompetentes em uma pretensa democracia irremediavelmente falsa, pela ausência de quem fosse realmente capaz de despertar o povo para a realidade adversa. O eleito de 2018 é apenas a última consequência de uma série de crimes cometidos contra todos nós, sem nos darmos conta da prepotência e da gravidade deste aparente desfecho de uma longa história. Digo aparente por entender o futuro insondável.

Peculiar personalidade a do nosso presidente da República. Ele apresenta a catadura doentia de um ser empenhado em se manter no comando do País e ao mesmo tempo limitado para sustentar uma fala adequada ao momento, perdido em sua patologia de zé-ninguém gravemente enfermo. Quando o ex-capitão se compara a Donald Trump, exibe o seu desconhecimento das coisas do mundo, a sua inarredável incapacidade de formular ideias orientadas pela razão. Me vem à mente a imagem de um náufrago agarrado a um escombro do barco engolido pelas ondas e ainda a se supor em salvo. Trump tem às suas costas um grande país, embora decadente de certos pontos de vista, mas dotado de recursos materiais, morais e intelectuais: universidades, instituições de pesquisa, hospitais modelares, indústria ainda pujante, imprensa de qualidade, sem contar a Hollywood dos irmãos Coen e de outros que dominam o riscado.

O Brasil não pode se permitir qualquer tipo de comparação, cada vez mais afastado da contemporaneidade, cada vez mais entregue à sanha destrutiva da casa-grande, e inexoravelmente despreparado para enfrentar a pandemia. Tentemos imaginar a possibilidade de blindar, como se diz, as favelas da Rocinha, no Rio, e de Paraisópolis, em São Paulo. Imaginemos os hospitais, os prontos-socorros, os ambulatórios das periferias, chamados a hospedar doentes necessitados de terapia intensiva.

Estamos vendo a cobertura da crise espanhola. Vimos assim cenas de corredores hospitalares em que os infectados jazem diretamente no solo, sem dispor para evitar o contato com o chão de um simples lençol. Daí a referência inicial à generosidade da natureza ou, se quiserem, da clemência divina. É aceitável a ideia de que, em virtude da sua localização no mapa-mundi, o Brasil abrande os efeitos da pandemia graças às temperaturas elevadas em larga parte do país mesmo no inverno, que contrastam a avançada do vírus.


Não é esta, entretanto, a saída que Bolsonaro enxerga à sua frente. Ele confia, isto sim, nas suas convicções dignas do frequentador de bares dos arrabaldes mais empoeirados nas madrugadas embaçadas, quando a névoa desce sobre a mesa invadida por uma selva de garrafas vazias. Tal é Bolsonaro como o enxergam hoje muitos brasileiros dos bairros ditos de classe média. Toma-me outra certeza, irredutível: aqueles que orquestram os panelaços dos começos da noite são os mesmos que já recorreram aos clangorosos instrumentos para invocar o impeachment de Dilma Rousseff e a prisão de Lula. Não me surpreenderia se envergassem de uma hora para outra as camisetas canarinho e fossem desfilar na avenida.

Este é o Brasil afluente e influente, e admitamos que muitas das ideias do nosso presidente batem com aquelas já professadas por ricos, semirricos e seus aspirantes. Roberto Requião apontou recentemente, e com extrema clareza, o mal que acomete Bolsonaro: o próprio bolsonavírus, a recomendar a internação no hospício mais próximo. Requião é um cidadão lúcido, no Brasil há poucos como ele. E vale pensar que Bolsonaro no hospício, ou onde for, conquanto longe do Planalto, a oportunidade seria excelente para o súbito comparecimento do nosso exército de ocupação, as Forças Armadas brasileiras inspiradas pelo Duque de Caxias e que se esmeraram em mais de um século de história em golpes de Estado para favorecer a Idade Média. Talvez desta feita venham para decretar o estado de sítio.

A lógica de um país democrático precipitaria o impeachment do presidente inadequado ao posto e à conjuntura, determinado pelos outros poderes, Legislativo e Judiciário. Este entrecho carece, porém, de qualquer resquício de lógica, de sorte que o poder mais alto, aquele fardado, está destinado a se levantar, caso o presidente tenha de fazer as malas. Quem acompanha a evolução da pandemia mundo afora não está habilitado a negar que o Brasil continua único na sua desgraça.

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