

Opinião
Bolsonaro, as armas e as urnas
Armamento e terror eleitoral são unidos como Lúcifer e Belzebu


Diante das sucessivas e intermináveis tropelias bolsonaristas, não resisti à tentação de retomar o tema Democracia e Estado Moderno devido à insistência do incumbente presidencial em louvar as armas e desconfiar das urnas. (Há algum tempo me debrucei sobre o tema no jornal Valor.)
Falou Bolsonaro:
“Nós defendemos o armamento para o cidadão de bem, porque entendemos que a arma de fogo, além de uma segurança pessoal para as famílias, ela também é a segurança para a nossa soberania nacional e a garantia de que a nossa democracia será preservada”.
A louvação do armamentismo tem as mãos atadas à desconfiança nas urnas eletrônicas, assim como Lúcifer não desgarra de Belzebu. “Cidadão de bem” é a expressão, na fala de Bolsonaro, que denuncia as desavenças do capetão com os princípios que regem a convivência social ao abrigo do Estado Moderno.
As formações políticas que se consolidaram desde a Era do Iluminismo e da Revolução Francesa não admitem aos cidadãos invocar a própria santidade, honestidade ou boa consciência para contestar a universalidade da lei ou os procedimentos legais.
Não apenas aqui, neste Brasil de tantos atrasos e tantas ignorâncias, mas no mundo inteiro, a crise de legitimação do Estado vem suscitando “ondas regressivas” de apelo às falsidades da consciência moralista e hipócrita, em prejuízo da segurança dos cidadãos.
As reflexões mais profundas sobre a ética da modernidade repeliram sempre com energia as tentativas conservadoras de desmoralizar o formalismo da lei em nome da espontaneidade, dos bons sentimentos, da palavra de honra.
É oportuno invocar a sabedoria de Thomas Hobbes: “… cada qual governado por sua própria Razão, e não havendo algo que o homem possa lançar mão para ajudá-lo a preservar a própria vida contra os inimigos, todos têm direito a tudo, inclusive ao corpo alheio. Esse Direito de cada um sobre todas as coisas não garante segurança para ninguém (por mais forte e sábio que seja), de viver durante todo o tempo que a Natureza permitiu que vivesse”.
A convivência pacífica só pode surgir em uma sociedade em que o Estado está consolidado, em que a sociedade civil está submetida às leis emanadas do Soberano. O Soberano tem o dever primordial de garantir a segurança de todos os cidadãos contra as ameaças de violência de uns poucos.
Na Filosofia do Direito, Hegel condena as queixas e reações contra a involução que pretende impor a moral particularista. “São não apenas errôneos esses protestos, mas revelam um apego malsão à sua própria particularidade que é desfrutada narcisisticamente sob o disfarce da moralidade.”
A Modernidade carrega em seu Espírito a missão de universalizar os direitos e as obrigações enquadrados na formalidade da lei. Quando o Espírito descuida, acordam os pequenos demônios da opressão, do particularismo e da submissão dos indivíduos à vontade de outros indivíduos. Essa é a essência da liberdade dos que se manifestam nas ruas, assassinando os adversários políticos e clamando pelo fechamento do Supremo Tribunal Federal.
O sistema de forças que se abrigava sob a pele do regime militar brasileiro sobreviveu incólume à transição democrática. Pior que isso, durante esses anos de observância das regras democráticas cresceu sem parar o poder de veto e de bloqueio dessas forças sobre qualquer iniciativa política ou econômica capaz de alterar o status quo.
Há quem não perceba que cultivamos esses primitivismos e esteja disposto a jurar que por aqui ainda predomina o homem cordial, afetuoso e disposto ao perdão e à amizade. Neste caso, a ignorância nativa está se valendo da falsificação de um conceito elaborado por Sérgio Buarque – o homem cordial – para designar um comportamento típico: avesso às normas gerais, impessoais e igualitárias, e inclinado às relações de compadrio, ao favorecimento, ao particularismo, à reafirmação das desigualdades. Para os amigos tudo, para os inimigos…
Somos, na verdade, muito mais iguais ao que fomos no passado. Somos, afinal, nossos próprios fantasmas. Nossos mortos somos nós e assim não temos as lições do passado, mas a eternidade da recorrência e da mesmice. Somos inimitáveis e originais, por certo, nas celebrações e nos escândalos. Aí sim, escancaramos a alma e produzimos espetáculos deslumbrantes, feéricos. O mundo curva-se entre estarrecido e deslumbrado diante da torpeza inocente, translúcida, da baixaria sem preconceitos, franca e risonha.
Faltam-nos os momentos de seriedade trágica, aquele instante fundador em que o declínio do velho é substituído apenas por sinais, indícios, débeis movimentos do novo, que obrigam o homem a se decidir ainda suspenso entre dois mundos. Nossa história é na verdade uma procissão de milagres. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1218 DE CARTACAPITAL, EM 27 DE JULHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Bolsonaro, as armas e as urnas”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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