

Opinião
Bolsonarismo, comunicação, desinformação e eleições
Em 2024, a estrutura comunicacional do bolsonarismo perdeu seus operadores no executivo federal, mas continuou muito ativa nos gabinetes dos deputados e contando com o apoio da imprensa alinhada. Mas como ela se saiu?


Excetuando algumas subáreas dos estudos da comunicação e poucas contribuições de cientistas políticos, a questão da informação é solenemente ignorada pelas ciências sociais brasileiras. Coisa similar se observa no comentário político, capitaneado por jornalistas e alguns acadêmicos que fazem serão como publicistas. Ou pelo menos era assim até que Jair Bolsonaro passou como um furacão pela eleição de 2018, alterando para sempre (ou pelo menos assim parece) a maneira como os especialistas e interessados entendem a dinâmica eleitoral.
Como entender o que ocorreu em 2018? Primeiramente, é preciso conceber a eleição como um processo comunicacional no qual um menor grupo de pessoas, os candidatos, tentam convencer um grupo grande de pessoas, os eleitores, a escolherem seu nome na urna.
Do ponto de vista comunicacional os candidatos à Presidência da República, e aos demais cargos majoritários, contaram ao longo da Nova República com três canais de comunicação com o eleitorado: a campanha direta (comícios, panfletagens, carreatas, etc.), o Horário Gratuito da Propaganda Eleitoral (HGPE) e os meios de comunicação de massa da grande imprensa, que em períodos eleitorais quase sempre costumam investir na cobertura das campanhas.
A longa sequência de vitórias do PSDB e do PT em pleitos presidenciais se deu dentro desse paradigma da comunicação eleitoral. O PT foi sempre forte na campanha direta, devido a sua capilaridade e estrutura partidária, o PSDB era favorecido nesse âmbito pelas doações empresariais e por sua estrutura partidária também capilar. O HGPE se dividia entre as coalizões mais representativas, que esses partidos sempre encabeçaram, uma da direita ao centro e outra da esquerda ao centro. Já os grandes meios de comunicação sempre favoreceram os candidatos do PSDB, e Collor antes deles, nas disputas com candidatos petistas, mostrando-se dispostos a praticar uma cobertura politicamente enviesada com a finalidade de produzir resultado eleitoral, nem sempre alcançado.
Mas em 2018, Bolsonaro ganhou a eleição sem estrutura partidária legal, sem HGPE e recebendo uma cobertura muito negativa dos grandes meios de comunicação, ainda que abundante.
Essa vitória surpreendente levou muitos comentaristas a aderirem apressadamente a explicações simplificadoras. Boa parte a creditou à habilidade de sua campanha em usar as redes sociais, mas especificamente em inundar as redes sociais com notícias falsas a respeito do PT, Lula e a esquerda em geral. Tal habilidade é verdadeira, ainda que seja só parte da explicação. Apesar de ter sido criticado pelos jornalões e pela Rede Globo, Bolsonaro foi apoiado por grandes empresas de mídia como a Record, o SBT, a Rede TV e até a Bandeirantes.
Durante seu governo, Bolsonaro “atualizou” sua plataforma de comunicação, transformando a campanha nas redes naquilo que ficou conhecido como “Gabinete do Ódio”, agora contando com uma miríade de funcionários de comissão de seu governo e dos gabinetes de parlamentares alinhados. O modus operandi continuou a ser a promoção da desinformação, agora voltada para assuntos políticos do dia, seguindo os trending topics de sua Guerra Cultural contra a “esquerda”. Os canais propriamente eleitorais, HGPE e campanha não funcionam em períodos não eleitorais. Já a imprensa grande continuou cindida entre os meios que eram críticos a sua pessoa e aqueles que continuavam a lhe dar apoio.
Com a derrota por estreita margem na eleição presidencial de 2022, a estrutura comunicacional do bolsonarismo perdeu seus operadores no executivo federal, mas continuou muito ativa nos gabinetes dos deputados alinhados e contando com o apoio da imprensa alinhada, que ademais das grandes empresas já citadas, inclui uma rede capilar de pequenos meios jornalísticos, radiofônicos e de internet que cobre todo o País.
Foi basicamente assim que o bolsonarismo chegou às eleições municipais de 2024. Mas como ela se saiu? De modo mais geral, os resultados da eleição obtidos até agora estão longe de evidenciar uma vitória acachapante do bolsonarismo. Os quatro partidos que mais fizeram prefeitos, PSD, MDB, PP e União Brasil, não são bolsonaristas. Seu sucesso eleitoral se deveu, entre outras coisas, à habilidade da burocracia partidária de articular candidaturas viáveis nos diferentes contextos municipais, às vezes apoiando candidatos bolsonaristas, outras não.
Já o PL, o partido com a maior fatia dos fundos eleitoral e partidário, ficou somente em quinto lugar. Ademais, os candidatos do partido não foram todos apoiados por Bolsonaro e por sua máquina de comunicação. Por que não assistimos à uma vitória avassaladora do bolsonarismo, uma vez que a esquerda teve um resultado bastante acanhado nas urnas em 2024?
As razões são múltiplas, mas a principal tem a ver com as diferentes lógicas das eleições nacionais e municipais. A comunicação bolsonarista mostrou-se muito efetiva no contexto nacional, inclusive porque as redes sociais e serviços de mensageria permitem uma propagação viral de conteúdos. Já nos municípios os conteúdos são sempre muito específicos e, portanto, sua potencialidade de viralização é muito menor. Ademais, a viralização dentro de um determinado nicho demográfico não garante crescimento da base eleitoral dentro do município. Não é coincidência que as previsões catastróficas acerca do uso de desinformação e de deep fakes nas eleições de 2024 não se concretizaram. Tais recursos são mais difíceis de serem operacionalizados no nível municipal.
De maneira similar, os meios de comunicação de massa de grande porte, mesmo os bolsonaristas, não conseguem operar no nível municipal, a não ser nas grandes capitais. Já a rede de meios pequenos, mesmo a que serve ao bolsonarismo, é capturada por interesses políticos locais, ou seja, varia em cada contexto.
Não é coincidência o fato de que canais de comunicação que pareciam ter sido relegados à insignificância pela avalanche bolsonarista de 2018, como o HGPE e os debate televisivos, ganharam importância renovada, particularmente nas grandes cidades, onde acontecem.
Em suma, nas eleições municipais de 2024 assistimos à vitória da organização partidária, do orçamento de campanha, das articulações e alianças locais, e mesmo de canais de comunicação “tradicionais”, sobre as influências nacionais do bolsonarismo ou mesmo do lulismo.
É inegável que o bolsonarismo, entendido como a associação à figura de Bolsonaro, continua a ser tratada como um baú de votos capaz de catapultar candidaturas ao topo da competição eleitoral, mas ele traz consigo o efeito adverso da alta rejeição, que pode ser mortal. Seu uso variou tremendamente de acordo com os contextos locais, inclusive para candidatos do PL.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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