Carol Santos Pinho

Carolina Pinho é mestra e doutora em Educação e Filosofia. Prof. na Universidade Estadual de Feira de Santana/Ba. Além de docente e pesquisadora na área de educação e feminismo negro, ela atua é militante, afroempreendedora na Central das Divas e consultora na área de diversidade

Opinião

BBB21 e harmonia racial: se unir é legítimo e necessário aos negros

‘Combater a branquitude não é agir contra indivíduos brancos. A compreensão disso é fundamental’, escreve a professora Carol Pinho

(Reprodução/Globo)
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A edição 21 do Big Brother Brasil estreou com enorme audiência. Esse alcance também pode ser medido pelas menções nas redes sociais. Mesmo antes da estreia, o BBB 21 foi mencionado três milhões de vezes no Twitter no dia 21 de janeiro de 2020.

Esses números demonstram o incrível alcance do programa que gera cifras milionárias para a Globo, mas que também provoca importantes discussões a partir das relações que se estabelecem entre os participantes. Com tamanho alcance, ao invés de tentar convencer as pessoas a não assistir o programa – lutando de forma individual contra uma das maiores indústrias do entretenimento do mundo – acredito na possibilidade de dialogar sobre temas que muitas vezes não são pauta comum nos lares brasileiros tais como: saúde mental, o racismo, a auto estima de negros e negras, a “desconstrução” do machismo e racismo, e muitos outros.

Um dos temas que me chamou atenção em especial foi provocado pelo diálogo entre os participantes Projota (rapper, compositor e cantor) e Lucas Penteado (ator, poeta, MC, slammer, diretor, dramaturgo) na madrugada do dia 31. Depois de ter sofrido diversas críticas e ataques vindos de diversos participantes da casa por suas posturas nas duas festas que aconteceram na primeira semana de programa, Lucas estava isolado e sendo impedido inclusive de se sentar à mesa durante uma refeição. A conversa foi recebida pelo público como um momento de empatia e acolhimento.

O papo foi importante por demonstrar que é possível criticar e chamar atenção de alguém por seus erros sem utilizar o ódio. Quando essa conversa acontece entre dois homens pretos, ela se torna ainda mais relevante. Desconstrói a imagem de falta de cuidado e afeto e restabelece conexões de amor e sensibilidade que sabemos ser possível entre homens negros.

Entretanto, um tema me chama atenção. Ele aparece na fala do Projota transcrita abaixo:

“Você vem com uns papos torto pra mim, pra mim, parça!? Vim falar que a gente tinha que fazer todo mundo embora, ficar só os preto contra os brancos. Nunca acreditei nisso! Nunca acreditei nisso! Que hora nos meus raps você entendeu isso? Em que momento eu escrevi alguma coisa nos meus raps que dizia isso?

Eu sou filho de mulher branca, e filho de um homem preto. Marido de uma mulher branca, pai de uma criança branca. Eu nunca preguei isso, mano! Nunca foi isso que eu preguei. O que eu prego é a busca pelo respeito por nós, pela igualdade. Tudo que eu encontrei nessa casa quando entrei foi sorrisos, tudo que você encontrou nessa casa foram sorrisos, quando você entrou aqui. (…)”

Nesse trecho, Projota reivindica o direito de não se unir a outras pessoas negras como estratégia de jogo com o argumento de amar pessoas brancas, como sua mãe, esposa e filha. O argumento utilizado é um equívoco comum em um País que se formou com base na miscigenação. Um equívoco porque personaliza um debate que não é pessoal, é sobre um sistema estruturado por relações racistas.

Priorizar pessoas negras nas relações cotidianas – como propôs o Lucas – não significa ser contra pessoas brancas, significa combater o lugar de privilégio estrutural em que pessoas brancas, como grupo social, vêem a si e outras pessoas brancas. Essa posição garante às pessoas brancas uma posição de “normalidade”, de poder, de conforto diante dos privilégios simbólicos, subjetivos e materiais. Essa posição social tem sido denominada de branquitude e combatê-la não significa combater pessoas brancas que podemos eventualmente amar.

A argumentação de Projota já foi reconhecida como argumento científico no Brasil e deu o tom das relações sociais no País. Há uma percepção elaborada e consolidada no pós escravidão de que pessoas negras e brancas são iguais. Neste sentido, o Brasil não seria um país racista, afinal brancos e não brancos vivem harmonicamente, inclusive estabelecendo relações amorosas entre si.

Reconhecer a existência do racismo seria reconhecer que existe uma dívida histórica com povos indígenas e negro, seria reconhecer que existe privilégio para pessoas brancas e que, portanto, haveria necessidade de revisar o modelo de sociedade brasileira.

A ideia de relações harmônicas entre brancos e não brancos se consolida como um novo paradigma a partir do livro Casa Grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre. A obra foi um divisor de águas pois defende que as pessoas negras são peça fundamental para formação do povo brasileiro, se contrapondo aos ideais nazistas e fascistas estabelecidos na Europa.

Através dessa ideia, se consolida o mito de que as raças que formam o povo brasileiro vivem em uma democracia, vide as relações íntimas entre pessoas brancas e negras, que geraram a maior prova da relação de paz entre raças: a mestiçagem.

Quando Projota reivindica a harmonia entre brancos e negros no BBB 21 com base em suas relações pessoais de amor, ele está fortalecendo uma ideia que foi utilizada para negar e, portanto, perpetuar o racismo no Brasil. Nada mais conveniente do que mostrar em rede nacional que há uma harmonia entre raças, que a unidade entre pessoas negras é desnecessária, afinal, não existe racismo. O fortalecimento dessa ideia em rede nacional fortalece uma hegemonia que aponta para a resolução de problemas coletivos a partir de ações individualizadas.

Se unir a partir da identidade racial é legítimo e necessário para as pessoas negras. Não podemos cair na armadilha de usar relações pessoais para tratar um tema que não é sobre indivíduos e sim sobre estruturas de poder.

Definitivamente, combater a branquitude não é agir contra indivíduos brancos. A compreensão disso é fundamental não apenas entre pessoas negras, mas também entre pessoas brancas parceiras que reivindicam a luta contra o racismo.

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