

Opinião
Autoritarismos
O avanço da extrema-direita incorpora um novo modelo de esvaziamento do ideário democrático e do sistema de proteção dos direitos


Pesquisas estimam 35% dos votos para a extrema-direita nas eleições francesas marcadas para o domingo 30, após o presidente Emmanuel Macron dissolver a Assembleia Nacional e convocar um sufrágio legislativo antecipado, em razão do baixo desempenho do seu partido na votação para o Parlamento Europeu.
Nos Estados Unidos, o trumpismo tem mostrado força, apesar da fatídica invasão ao Capitólio e da condenação criminal de Donald Trump. Na América Latina, a ascensão de Javier Milei na Argentina é apenas uma demonstração da crescente força da extrema-direita na região.
Referidos exemplos nos levam a alertar para o fato de a operacionalização de governos autoritários ocorrer, na contemporaneidade, por meio de uma relação parasitária com a lógica democrática, da aparência de respeito às instituições, à democracia e ao Estado de Direito. Ao contrário da brusca interrupção do Estado democrático para a instauração de um Estado de exceção, convivem um Estado Democrático de Direito subvertido, que se realiza apenas abstratamente, e um Estado de exceção que, mesmo lastreado em técnica de governança permanente de exceção, não se assume como tal.
Por essas razões, o avanço da extrema-direita no mundo causa grande preocupação. Estamos diante de inovadoras manifestações de esvaziamento do ideário democrático e do sistema de proteção dos direitos.
Com efeito, uma das características do contemporâneo autoritarismo está, ao invés da interrupção do Estado Democrático de Direito pela instauração de um Estado totalitário, na inserção de mecanismos típicos da exceção no interior da rotina democrática. Tais mecanismos hospedam-se na estrutura estatal na forma de um autoritarismo líquido que convive com medidas democráticas.
O autoritarismo líquido, tanto quanto o adensamento típico do Estado autoritário, é nefasto. Confere ao Estado um poderio que, diluído na rotina democrática, enfraquece os mecanismos de controle social do poder, bem como da sua instrumentalidade.
Diante do quadro de recrudescimento das investidas contra a democracia e contra os direitos, isso por meio de medidas de exceção típicas do que chamamos de autoritarismo líquido, ainda que substancialmente adensadas, nossa grande tarefa é garantir a consolidação e a efetividade da democracia e dos direitos.
Mais especificamente, hoje em dia nos deparamos com perfis distintos de autoritarismo. Por inexistir uma declaração de suspensão de direitos, há uma liquidez. As medidas de exceção são fragmentárias no sistema e convivem com medidas democráticas. Os direitos são suspensos de fato e de forma fraudulenta e não de forma declarada.
O enfrentamento do autoritarismo líquido, assim intitulado por não se assumir como tal, não ser uniforme e minar, em intensidades variadas, os âmbitos da vida democrática, impõe aprofundada análise dos fatores de desestabilização e de subversão dos direitos fundamentais e da democracia. A premissa essencial é a de que os mais recentes mecanismos de exceção possuem uma lógica distinta dos Estados totalitários de outrora. Consoante acurada análise de Ernst Fraenkel do totalitarismo do século XX, a emergência do por ele intitulado Estado dual pressupunha a coexistência de Estado-norma e de um Estado de prerrogativas: de um lado, normas relativas às relações privadas e ao sistema de Justiça visavam, essencialmente, garantir previsibilidade e continuidade do sistema capitalista, ao passo que, no campo dos direitos fundamentais, prevalecia a exceção pela suspensão do Direito e da Constituição.
A história humana não ocorre por intermédio de fases estanques, como às vezes a descrição didática em períodos transparece ao inadvertido. Ao contrário, ela se revela por processos complexos, nos quais elementos de conformação política e social do período anterior podem ser – e comumente são – identificados nos subsequentes. Inexistem, inclusive, garantias contra retrocessos e involuções civilizatórias. Só há ordem na mera descrição histórica, bem como nas tentativas de sua compreensão pelos manuais escolares. Na história vivida prevalece o caos.
O avanço do extremismo no mundo nos causa grande preocupação. Medo, ódio, ressentimento, decepção e angústia têm sido capturados por meio de narrativas pretensamente racionais e legitimadoras da imposição de mecanismos de segregação e violência. O efeito para a vida em comunidade é devastador. A fragilização dos espaços e dos sentidos da democracia e da relação de pertencimento à sociedade requer incondicional compromisso no enfrentamento ao autoritarismo. •
Publicado na edição n° 1317 de CartaCapital, em 03 de julho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Autoritarismos’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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