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Autoritarismo trumpista

O presidente dos EUA concentrou, estrategicamente, a produção de medidas de exceção, o que dificulta a crítica e o questionamento

Autoritarismo trumpista
Autoritarismo trumpista
O presidente dos EUA, Donald Trump. Foto: Brendan Smialowski/AFP
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As formas de autoritarismo do século XXI possuem determinadas especificidades quando comparadas com as manifestações do século anterior. Ainda que identifiquemos elementos de continuidade, as manifestações das últimas décadas, por estarem diluídas na rotina democrática, tornam o tema ainda mais desafiador.

O autoritarismo deixou de ser a manifestação de um Estado de exceção em sua acepção clássica para dar lugar às medidas de exceção associadas à produção fractal e líquida. Ou seja, deparamo-nos com um Estado de exceção que se manifesta por medidas de exceção, não por governos de exceção. Em outras palavras, utilizamos a denominação autoritarismo líquido para falar dessa nova natureza das medidas de exceção no interior das rotinas democráticas, por se tratar de medidas fragmentadas, cirúrgicas, acionadas sob uma aparência de legalidade, o que torna sua identificação mais difícil.

Essa nova forma de autoritarismo é identificada, grosso modo, no governo Trump, no âmbito do qual, além das já citadas características, em vez de essas medidas se protraírem no tempo e serem produzidas paulatinamente, elas seguem aquele velho estratagema de matriz maquiavélica, segundo o qual o mal se faz de uma vez só. Trump concentrou, estrategicamente, a produção de medidas de exceção, o que, inclusive, dificulta a crítica e o questionamento. Foram adotadas medidas que restringem o direito à livre expressão por parte de cientistas e pesquisadores, que tolhem direitos de imigrantes, que colocam em xeque o multilateralismo e que visam, em escala ampla, fragilizar as instituições domésticas de controle do poder e de tutela dos direitos sociais.

Com efeito, nas fronteiras norte-americanas, a decretação do Estado de emergência implicou o esvaziamento de direitos dos imigrantes. Deportações cruéis e degradantes, violência e desrespeito à integridade física e moral objetivam transmitir o contundente recado de que o outro ali não será aceito. O uso de Guantánamo com a finalidade de aprisionar os “acusados”, algo brutal com todo o simbolismo que, inclusive, representa, é, igualmente, um recado categórico de uma nova forma de tratar o inimigo, desumanizando-o ao subtrair a proteção jurídica e política mínima a que qualquer corpo humano deveria ter direito em face de todo e qualquer poder político.

Mais recentemente, o trumpismo passou a insurgir-se contra universidades e, no âmbito das relações internacionais, contra o multilateralismo.

A desumanização levada a efeito pela exceção ocorre escolhendo o inimigo e nomeando-o. É a linguagem que desumaniza o inimigo por meio do enquadramento em determinada categoria supressora de qualquer individualidade, seja enquanto ser humano, seja enquanto Estado dotado de soberania.

Tais exemplos nos levam a afirmar, enfaticamente, que os Estados Unidos vivem um momento especialmente autoritário, jogando no lixo a imagem de que assumiram incondicional ou ao menos relevante posição na tutela dos direitos em escala global. Isso é grave e vai ter repercussões profundas não apenas na vida norte-americana, mas no mundo todo. Estamos diante da ascensão de uma nova extrema-direita dotada de elevadíssimo potencial autoritário, assim como a clássica extrema-direita nazifascista, mas com novas vestes e novo instrumental.

Medo e ódio têm sido capturados pelo soberano por meio de narrativas pretensamente racionais e legitimadoras da imposição de mecanismos de segregação e violência, em prejuízo da pluralidade e da tolerância. Os exemplos aqui citados, aos quais se somam muitos outros – tais como o enfraquecimento de órgãos multilaterais de defesa de direitos, guerra comercial e utilização do caos e da força bruta como instrumento cotidiano de formação de capital político –, nos levam a alertar que a história humana não ocorre por fases estanques, como às vezes a descrição didática em períodos transparece ao inadvertido. Ao contrário, ela se revela em processos complexos, nos quais elementos de conformação política e social do período anterior podem ser – e comumente são – identificados nos subsequentes. Inexistem, inclusive, garantias contra retrocessos e involuções civilizatórias.

A análise do autoritarismo líquido, assim intitulado por não se assumir como tal, não ser uniforme e minar, em intensidades variadas, os âmbitos da vida democrática, impõe aprofundada avaliação dos fatores de desestabilização e de subversão dos direitos fundamentais e da democracia. O enfrentamento à gradual fragilização dos espaços e dos sentidos da democracia e da relação de pertencimento à sociedade requer que desnudemos os artifícios das novas formas de autoritarismo enfraquecedoras do nosso pacto civilizatório. •

Publicado na edição n° 1359 de CartaCapital, em 30 de abril de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Autoritarismo trumpista’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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