Ana Andrade

Gerente sênior de Campanhas da All Out na América Latina

Opinião

BOs dificultam denúncias da LGBTfobia e mascaram estatísticas no Brasil

A maioria das ocorrências fica registrada como roubo, assassinato, agressão

(Foto: Agência Senado)
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Em 2019, discriminar pessoas lésbicas, bissexuais, gays, trans, travestis e/ou intersexo (LGBT) passou a ser crime no Brasil.

Por trás de uma frase simples e direta para descrever uma vitória tão importante como esta, esteve um longo e complexo processo de articulação dos movimentos sociais brasileiros. Foram muitos os anos dedicados à luta e muitos os projetos de lei barrados no Congresso, até que, em 2016, o debate foi para o Judiciário, no Supremo Tribunal Federal (STF).

Naquele ano, foi iniciado o julgamento conjunto de duas ações (ADO 26 e MI 4733) que, em 2019, resultariam na, agora tão falada, criminalização da LGBTfobia – ou da discriminação contra pessoas LGBT.

De acordo com a decisão do STF, foram estendidas as proteções da lei antirracismo (7.716/89) à população LGBT – e também as sanções às pessoas que a descumprirem. Também como parte da decisão, ficou determinado que este enquadramento da LGBTfobia vale até que o Congresso Nacional aprove uma lei específica de proteção às pessoas LGBT.

Ou seja: a LGBTfobia é crime, sim. Mas foi por meio de uma decisão judicial e não temos, hoje, nenhuma lei federal, de abrangência nacional, que ampare uma pessoa LGBT vítima de um crime motivado pelo preconceito.

De acordo com um estudo publicado no ano passado pela organização LGBT+ All Out com o Instituto Matizes, identificou que, até 2019, menos da metade dos estados brasileiros tinham leis específicas para proteger para quem é LGBT da discriminação. E, na esfera municipal, não chegavam a 30 os municípios com este tipo de lei.

Na prática, isso significa que qualquer denúncia e registro de boletim de ocorrência (B.O.) de LGBTfobia vem acompanhada de uma série de barreiras (mais exatamente 34, de acordo com o mesmo estudo) que dificultam e, em alguns casos, até inviabilizam o processo.

Por exemplo, em muitos estados não houve nenhum tipo de preparo ou treinamento de agentes policiais para acolher e compreender a situação de pessoas que foram vítimas de um crime de LGBTfobia, o que desencoraja o registro dessas ocorrências. Em outros, não existe nem a possibilidade de registrar no B.O. que a motivação de uma agressão foi o preconceito e não, por exemplo, uma briga de trânsito, ou um roubo.

O fato é que, até hoje, não é possível saber quantos e quais são os crimes de LGBTfobia que acontecem no Brasil. Na maior parte dos casos, essa informação não é apenas inacessível – ela, na verdade, nem existe.

Sem uma forma padronizada – ainda que adequada a cada estado – de indicar que o crime é motivado por preconceito LGBTfóbico, a maioria das ocorrências fica registrada como “apenas” roubo, assassinato, agressão… Sem precisar que a motivação foi o preconceito. Com um registro específico, é possível gerar esses dados e usá-los para cobrar mais segurança para as pessoas LGBT+.

Ter informações sobre crimes ajuda a preveni-los, é verdade. Mas o ideal mesmo é que ninguém nem chegue a cometer LGBTfobia, certo? E é por isso que a luta contra o preconceito precisa ir além. Além de mudar um campo no B.O., além de lutar por leis que punam quem já nos agrediu, além dos arco-íris sazonais no mês do Orgulho LGBT.

E para levar essa luta além, para fazer com que parem de nos atacar, precisamos da ação coordenada entre a sociedade civil, os governos e também o mundo corporativo. Um exemplo disso foi uma mobilização interessante contra um projeto de lei LGBTfóbico que aconteceu no ano passado.

A Assembleia Legislativa do estado de São Paulo (Alesp) estava prestes a votar em um projeto de lei que tentava proibir que propagandas veiculadas no estado fizessem qualquer menção a pessoas e símbolos LGBT. A justificativa era que esse tipo de “propaganda gay” poderia influenciar negativamente as crianças.

A mobilização contra este projeto de lei foi ampla e veio de todos os lados.

A sociedade civil – organizações, coletivos, ativistas – se juntou para cobrar que deputados e deputadas votassem não no projeto. Em uma ação organizada pela All Out, organização da qual faço parte, montamos uma página onde uma pessoa poderia, com 2 cliques, enviar um email cobrando de que deputadas e deputados da Alesp votassem contra o projeto de lei. Foram cerca de 1,2 milhão de emails em mais ou menos 48 horas.

Já na própria Alesp, a articulação política de diversos mandatos – em especial o da deputada Erica Maluguinho – foi extremamente eficiente para garantir que o projeto retornasse a etapas anteriores da tramitação e não avançasse mais.

E, além dessas frentes, a participação de marcas e agências de publicidade na visibilidade do tema – e das ações da sociedade civil – foi determinante para garantir que não haveria nenhum tipo de restrição na propaganda com intuito de apagar a existência de quem é LGBT.

O exemplo de São Paulo mostra o poder que o alcance de uma marca conhecida pode ter. E como esse poder pode ser usado para impactar positivamente a vida das pessoas LGBT.

Foi pensando justamente na ampliação de alcance que a marca de sorvetes Ben & Jerry’s criou o movimento #AlémDeJunho para ajudar na campanha da All Out para resolver o B.O. da LGBTfobia.

Junho é o mês do Orgulho LGBT. É quando vemos o número de arco-íris em perfis corporativos se multiplicando, somado ao lançamento de lindas campanhas publicitárias sobre a inclusão de pessoas LGBT. Mas e #AlémDeJunho?

É aí que entra a Ben & Jerry’s, que é uma parceira de longa data da All Out e de tantas outras organizações LGBT da sociedade civil. Para somar o seu alcance ao de outras marcas gigantes, Ben & Jerry’s convidou Telecine, Mercado Livre e Doritos para reforçarem que todo o apoio às pessoas LGBT+ que mostraram em junho vale, sim, para o ano inteiro. E para fazerem isso apoiando uma iniciativa de combate à discriminação.

A importância deste tipo de ação, que amplia o alcance da nossa luta, é que, assim, ampliamos também o alcance de toda a diversidade de exemplos de nossa existência. Chegamos a quem nem conhece uma pessoa LGBT. Chegamos a quem só tem pessoas LGBT em seu círculo de afetos. Chegamos a muita, muita gente.

E, ao lembrar mais gente de que existimos – e em alguns casos até nos apresentar como possibilidades de vida –, mostramos que somos, acima de tudo, pessoas. E, como qualquer outra pessoa, queremos o direito à segurança de viver, amar e, por que não, sonhar.

Defender as pessoas LGBT – e outros grupos vulneráveis – não é sobre mim, que sou uma mulher lésbica, não é sobre você, que pode ser LGBT ou não. É sobre garantir que tanto quem está aqui agora quanto quem vem depois (e depois e depois e depois) vai poder, sim, viver, amar e sonhar.

E, hoje, sonhamos com um mundo onde pensar esse tipo de ação seja obsoleto. Onde não sejam mais quase 70 os países onde ser gay é crime. Onde toda pessoa possa viver, amar e ser livre – completamente protegida do preconceito. Vem com a gente?

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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