Luiz Gonzaga Belluzzo
[email protected]Economista e professor, consultor editorial de CartaCapital.
Falamos das universidades, mas não podemos desconsiderar as agressões na cultura e, muito pior, as desgraças que atribulam as creches
Matéria da Folha de S. Paulo anuncia: Governo Bolsonaro corta R$ 2,4 bi do MEC, e universidades veem situação insustentável. Poucas páginas atrás, a mesma edição de 6 de outubro de 2022 informa que o Presidente atribui sua fragorosa derrota nos estados do Nordeste ao analfabetismo, diz ele, predominante na região.
Os brasileiros acompanham as peripécias cognitivas do Bozo e sabem que ele é um prodigioso especialista em analfabetismo. Ao longo da vida, o capetão exercita diariamente essa prática social.
Não espanta que seus enferrujados bacamartes insistam em alvejar as universidades e a cultura. A fuzilaria encontra respaldo em seus seguidores, fiéis Cavaleiros da Desordem Mental e da Pobreza Cultural. Seria injusto, no entanto, despachar essa confraria de ignaros para o Medievo. Essa tropa está nos primevos da humanidade, no Pleistoceno Inferior, a era – dizem os antropólogos e pesquisadores -dos primeiros passos do Pithecanthropus Erectus.
A barbárie bolsonarista se nutre, entre ouras barbaridades, da rejeição às normas que constituíram a formação do Estado Moderno
As universidades federais desmoronam, são destruídas pelos tacapes dos primitivos que governam o País. Falamos das universidades, mas não podemos desconsiderar as agressões na cultura e, muito pior, as desgraças que atribulam as creches.
Essa sucessão de tragédias configuram a Grande Regressão que aflige o país e promete uma Procissão de Desgraças, caso os Pithecanthropus conquistem o governo ainda uma vez.
No livro A Grande Regressão, Oliver Nachtwey apresenta o artigo Descivilização — Sobre tendências regressivas nas sociedades ocidentais. Nachtwey fundamenta sua argumentação a partir de Norberto Elias e Adorno/ Horkheimer.
Diz ele que Norberto Elias não considera o processo civilizatório inabalável nem progressista do ponto de vista evolucionário; a civilização não é, para Elias, “jamais concluída” e está “sempre ameaçada”. Está sempre ameaçada por seu oposto: a descivilização. Horkheimer e Adorno, por sua vez, sempre tematizaram isto como perigo inerente da modernização: temiam que, “em vez de atingir um estado humano verdadeiro”, a humanidade pudesse “afundar em um tipo de barbárie”.
A barbárie bolsonarista se nutre, entre ouras barbaridades, da rejeição às normas que constituíram a formação do Estado Moderno. Essa rejeição se expressa, sobretudo, nos apelos armamentistas do Ignaro presidente.
Em sua obra magna, O Processo Civilizador, Norbert Elias investiga a concentração do monopólio da força no Estado moderno. “Ao se formar o monopólio da forca, criam-se espaços sociais pacificados que normalmente estão livres dos atos de violência. (Nessas sociedades) o indivíduo é protegido principalmente contra ataques súbitos, contra a irrupção da violência física em sua vida. Mas, ao mesmo tempo, é forçado a reprimir em si mesmo qualquer impulso emocional para atacar outra pessoa… Ocorre uma mudança ‘civilizadora’ do comportamento.”
No entanto, é ilusório imaginar que a mudança civilizatória é irreversível. Peter Gay incita os pensadores da sociedade a considerar as relações estabelecidas por Freud entre biografia e cultura na sociedade de massas: “Os estudiosos da sociedade, sem excluir os escritores imaginativos, tem certamente sabido há bastante tempo que em grupos os indivíduos podem retornar a estados primitivos da mente, sujeitar a sua vontade a líderes, desconsiderar restrições e o ceticismo sensível que a educação cultivou neles tão dolorosamente”.
Os bolsonaristas declararam guerra aos demais. Uma declaração de guerra apoiada no pretexto do antipetismo, do anticomunismo e do anticristanismo travestido de pentecostalismo. Eles estão conclamando os aliados e, atenção, também os adversários para a guerra civil. Esta é forma que assumem as divergências sociais quando as regras da convivência pacificada pelo Estado são massacradas pelo retorno à barbárie.
Observador das turbulências que assolaram a sociedade inglesa no século XVII, Hobbes imaginou que o terror disseminado pelos bandos privados na luta religiosa só poderia ser contido pela concentração do poder e da força no Leviatã. Para ele, a visão da sociedade em que os homens conviviam pacificamente só pode surgir quando o Estado está consolidado, em que todos estão submetidos às leis emanadas do soberano.
A visão do homem predisposto ao contrato com o outro pressupõe o Estado organizado. Thomas Hobbes surpreende a sociedade dos indivíduos no momento em que o Estado submergiu na voragem da guerra religiosa, soçobrou na crise da sociedade governada pelo desejo e pelo medo. Para Hobbes, é permanente a possibilidade de o Estado, o Deus Mortal, ser destruído em uma crise desencadeada pelas rivalidades espicaçadas pela truculência individualista.
O soberano tem o dever primordial de garantir a segurança dos cidadãos contra as ameaças de violência. O medo da morte induz o homem a refugiar-se no Estado. Por isso a suprema obrigação moral do Estado é a de dar proteção ao cidadão. Hobbes considerava as forças armadas e a polícia órgãos imprescindíveis do Estado moderno, a encarnação de sua essência. Mas a segurança do cidadão estaria garantida apenas mediante a imposição de controles e limites aos funcionários da segurança pública, determinados pela lei.
Essas funções devem ser exercidas com rigor para conter impulsos destrutivos dos indivíduos, mas submetida às restrições necessárias para impedir que a soberania do Estado se transforme em arbítrio, ou seja, no exercício de um poder privado pela burocracia estatal encarregada da segurança pública. Não por acaso, a proposta de liberação das armas vem acompanhada do desejo de aparelhamento da Polícia Federal.
Nas repúblicas modernas, se é que temos aqui algo parecido com isso, figuram entre as cláusulas pétreas aquelas relativas à representação legitimada pelo voto, à impessoalidade na administração pública e à constituição de um sistema de poderes e garantias fundado na lei. O sistema de poderes e garantias ancorado na lei é o núcleo central do Estado contemporâneo. É isso que o obriga a punir, no exercício do monopólio da violência, as tentativas de opressão arbitrária de um indivíduo sobre o outro.
O descumprimento do dever de punir pelo ente público termina por solapar a solidariedade que cimenta a vida civilizada, lançando a sociedade no desamparo e na violência sem quartel. Os códigos da cidadania moderna foram concebidos como uma reação da maioria mais fraca contra o individualismo anarquista dos que se consideram com mais direitos e poderes.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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