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As trombadas dos capitais

Em meio a enxurrada de recursos de arbitragem com juros e especulação com moedas, emergentes levam surras periódicas

As trombadas dos capitais
As trombadas dos capitais
Não se trata de criar uma moeda única em substituição às cinco moedas nacionais, bastaria criar um banco emissor – Imagem: iStockphoto
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As danças e contradanças dos movimentos internacionais de capitais são desconsideradas por gregos e troianos no debate econômico nativo.

(Escrevi nativo para homenagear meu grande amigo Mino Carta.)

As continuadas flutuações do real perante o dólar deflagraram uma avalanche de opiniões que desrespeitam e ­ignoram o fenômeno monetário-financeiro internacional. As opiniões derramam-se em queixas que atribuem à irresponsabilidade fiscal os sucessivos e intensos declínios de valor do nosso Real diante do patrono do sistema monetário internacional, o Mister Dólar.

Imagino que uma passagem pela história possa nos ajudar a compreender o fenômeno. Vamos começar com a ­estagflação dos anos 70 do século passado. Naqueles tempos, a desvinculação do dólar de sua “base áurea” em 1971 juntou-se ao Choque do Petróleo de 1973 para incitar a continuada desvalorização do dólar. O declínio da moeda norte-americana foi enfrentado com a elevação da policy ­rate deflagrada por Paul Volcker em 1979. A subida dos juros alcançou a marca de 21% em 1980. Essa proeza foi apresentada, então, como uma medida destinada a alcançar o objetivo doméstico de controle da inflação, mas o efeito mais relevante para a economia internacional foi a recuperação do papel do dólar como moeda-reserva.

À sombra do fortalecimento do dólar, Tio Sam estimulou as políticas de abertura comercial e impôs a liberalização financeira urbi et orbi. Assim, suas empresas encontraram o caminho mais rápido e desimpedido para a migração produtiva, enquanto seus bancos foram investidos plenamente na função de gestores da finança e da moeda universais. Nesse período, os deslocamentos tectônicos na geoeconomia mundial – particularmente, a ascensão da China como potência manufatureira – produziram as trumpadas de Donald Trump que pretendem resgatar a hegemonia norte-americana em declínio.

O estudo do Banco de Compensações Internacionais (BIS) – The ­Transmission of Unconventional Monetary Policy to Emerging Markets – admite que há consenso a respeito da predominância dos fatores “externos” sobre os fatores internos na determinação dos fluxos de capitais.

Reza o relatório: 

“Os bancos centrais das Economias Emergentes têm enfrentado desafios políticos decorrentes tanto da apreciação da taxa de câmbio quanto da depreciação nas últimas duas décadas. Durante a década anterior à crise de 2008/2009, os diferenciais de taxas de juro resultaram em entradas substanciais de capital e pressões de apreciação da taxa de câmbio”.

O economista Claudio Borio, do BIS, já desvelou a verdade que a maioria dos analistas se esforça para esconder sob a rica tapeçaria de seus inefáveis “saberes fiscalistas”. A morfologia dos movimentos de capitais é intrinsecamente pró-cíclica em sua recorrência maníaca. Oscila entre abundância de grana estrangeira e as paradas súbitas.

Esse “eterno retorno do mesmo” (Nietzsche, tenha piedade) está determinado pela interação entre a liberalização das contas de capital, o avanço das economias “emergentes” como polos de atração da movimentação financeira e o papel dos EUA como provedores de ativos líquidos de “última instância”, os títulos do Tesouro norte-americano.

A interpenetração financeira suscitou a diversificação dos ativos à escala global, o inchaço dos mercados futuros de câmbio e juros e, assim, impôs a “internacionalização” das carteiras dos administradores da riqueza, o que coloca formidáveis desafios às políticas monetárias nacionais. Diante da enxurrada de capitais empenhados na arbitragem com taxas de juro e na especulação desaçaimada com suas moedas, os emergentes levam surras periódicas dos agentes da finança dotados de (sic) expectativas racionais.

O controle da liquidez em moeda forte é, portanto, crucial para a sempre precária combinação entre estabilidade e crescimento nas economias de moedas não conversíveis.

Os países periféricos mais bem-sucedidos, como a China, preferiram manter controles seletivos e pragmáticos de câmbio e de capitais. Acumulam reservas elevadas em moeda forte bem como elevaram substancialmente a participação do ouro na formação de seus ativos de reserva. Essa forma de gestão tem o propósito de evitar “choques de desvalorização”, que possam afetar negativamente a taxa de juros doméstica.

A sucessão de episódios valoriza­­­­­­­­­ção/des­valorização demonstra que a almejada correção dos chamados desequilíbrios globais vai exigir regras não compatíveis com o sistema monetário internacional em sua forma atual. O movimento dos BRICS revela a reação de um conjunto de países diante dos percalços de uma estrutura financeira global monetariamente hierarquizada, comandada pelo poder do dólar. •

Publicado na edição n° 1365 de CartaCapital, em 11 de junho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘As trombadas dos capitais’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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