Camilo Aggio

Professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais, PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas

Opinião

As semânticas do golpe e o cavalo de Troia de Bolsonaro

O debate sobre o conceito de golpe pode parecer acessório, perfumaria diante da realidade dos fatos. Mas não é

O então deputado Jair Bolsonaro na votação do impeachment de Dilma, em 2016. Foto: Reprodução/TV Câmara
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Após a deposição de Dilma, jornalistas, especialistas em política, intelectuais e comentaristas de redes sociais ingressaram num debate algo enfadonho: foi ou não golpe? Estabeleceu-se uma divisão binária, sem meio-termo: para uns, o impeachment foi um processo plenamente normal, que respeitou os ritos democráticos; para outros, uma clara manobra para sequestrar a soberania popular em razão de interesses e conveniências políticas e econômicas.

O debate sobre o conceito de golpe pode parecer acessório, perfumaria diante da realidade dos fatos e dos atos concretos. Mas não é. Quando falamos de política e democracia, não estamos tratando, exatamente, da verdade dos fatos, mas das percepções, intersubjetivas, que terminam influenciando a opinião pública e conferem a fatos e eventos legitimidade. É exatamente por essa razão que os sentidos importam e a semântica das coisas políticas organiza e dá vida à sua concretude no cotidiano. O sentido de golpe, portanto, importa.

No livro Como a Democracia Chega ao Fim, o professor de política britânico David Runciman defende que o conceito de golpe deve ser compreendido em um sentido amplo e aplicado à realidade contemporânea. Em outras palavras, que os golpes políticos na atualidade não se dão em sua forma clássica, com tanques, coturnos e baionetas nas ruas, como na primeira metade do século XX. Para Runciman, as condições postas já não são as mesmas, o mundo contemporâneo é mais complexo e oferece menor margem para que “golpistas clássicos” logrem sucesso.

O argumento de Runciman vai ao encontro de Steven Levitsky e Daniel Zibblat, autores de Como as Democracias Morrem. Para eles, é, sim, possível falar em golpe para além de seu sentido clássico na medida em que a subversão das ordens constitucionais e democráticas não se dão pela tomada de poder abrupta e violenta, mas por um processo incremental de deterioração das instituições do Estado por uma liderança política que alcança o poder por vias eleitorais. Caso os autores pensem em escrever uma nova edição, eu recomendaria que olhassem para o Brasil e observassem suas peculiaridades: se hoje assistimos a um evidente atentado à democracia, devemos agradecer não a um líder autoritário e antidemocrata eleito, mas à turma do ex-juiz e ex-subordinado de Jair Bolsonaro, que deixou o estrago para cuidarmos e se mandou para os Estados Unidos – onde, a essa altura, estaria preso se por lá tivesse feito o que fez por aqui. Mas esse é outro assunto.

Se a hipótese de que Dilma não foi vítima de um golpe não tivesse prosperado, muito dificilmente a ex-presidente não teria concluído seu mandato. O que definiu, portanto, o destino de Dilma – e de algum modo, do País – tem correlação direta com o modo como cidadãos e autoridades perceberam aquele evento. A como atribuíram a ele sentidos.

Jair Bolsonaro não planeja um golpe. O golpe já está em andamento.

A inimputabilidade que as instituições competentes lhe atribuíram (apesar do oceano de atrocidades e acusações que faz sem provas) já nos cobra um preço que extrapola a política e desagua em mais de 500 mil vidas perdidas. O veículo simbólico para o golpe que o presidente prepara já tem até apoio de alas aecistas do tucanato no Congresso: o voto impresso. Esse é o cavalo de troia do bolsonarismo. Não havendo voto impresso, a fraude já está dada, segundo o presidente. Havendo, a fraude tentará ser construída como ideia na opinião pública a reboque de uma potente engrenagem de propaganda digital. E tudo isso revestido por um plot conspiracionista: o sistema será corrompido para que Lula se torne presidente de novo.

Mas eis a questão: se não houver uma percepção da existência de uma fraude eleitoral na opinião pública e entre autoridades-chave, esse golpe não se concretizará. Principalmente entre aqueles a quem cabe a representação e aplicação do monopólio do uso da força e da violência do Estado. E nada disso tem a ver com a verdade, com os fatos. A verdade e os fatos são obras de engenharias simbólicas, principalmente em um país em que instituições são, no máximo, arremedos de instituições.

Ilustro melhor o problema: o general do Exército Luis Carlos Gomes Mattos, presidente do Superior Tribunal Militar, um bolsonarista convicto como a expressiva maioria de seus colegas, deu uma entrevista à revista Veja nesta semana. Como se diz na Bahia, é um vatapá de loucuras. Ao mesmo tempo em que afirma que não corremos riscos de retrocesso institucional, o general afirma que “a oposição está esticando a corda demais”. Na mesma entrevista, diz que Bolsonaro é “um democrata”.

O Diabo mora mesmo é nos detalhes. Perguntem-se: o que o general, que diz que é a oposição e não Bolsonaro quem “estica demais a corda”, quer dizer com “não haverá retrocesso institucional”? Será que ele está dizendo que a vontade da maioria conferida pelas urnas será respeitada pelas Forças Armadas? Ou será que a defesa da constitucionalidade significa que os nossos militares nos protegerão da fraude eleitoral promovida por quem tem “esticado a corda demais”, como alegará nosso presidente em outubro de 2022? Lembro que essa mesma turma não considera ditadura uma ditadura que perseguiu, torturou e matou por mais de 20 anos. Para eles, vivemos um processo democrático que nos salvou de um regime comunista. Sentidos importam e são construto coletivo.

Deixo a resposta com vocês.

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