Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

As regras do apartheid de hoje e a época do ‘pão velho’

Hoje são milhares e milhares de pobres perdidos no meio da rua, pedindo qualquer coisa para sobreviver às próximas vinte e quatro horas

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Quando criança, eu morava numa casa muito grande, espaçosa, localizada no bairro do Carmo, em Belo Horizonte. A Rua Rio Verde, onde ela ficava, era uma rua pacata, tão pacata que meu pai lavava a Rural ali mesmo, aos sábados, despreocupado com o trânsito, o volume de água que jorrava sem parar da mangueira e o sabão que escorria pela calçada.

A casa tinha um muro baixo revestido de pedras naturais, um portãozinho de ferro, sem cadeado, corrente, tranca, não tinha nada. Quem quisesse entrar, entrava. Era só tocar a campainha que minha mãe atendia. Algumas pessoas, envergonhadas de pisar com as sandálias sujas de terra no alpendre encerado, batiam palmas lá da calçada. Tupi latia, era automático.

Vinha gente de todo lugar, mas principalmente do Morro do Papagaio, que não ficava muito longe da nossa casa, à beira da BR-3, a estrada que ligava Minas ao mar. Gente humilde, gente sempre em busca de alguma coisa, roupa ou comida, batia de porta em porta. Na porta de Doutor Rui, na porta de Seu Nilo, na porta de Seu Ancelmo, na porta de Seu Elói e do Doutor Luiz Martins.

Era também gente comprando jornal velho e garrafa vazia. Minha mãe ia guardando na dispensa, os exemplares lidos do Estado de Minas, do Diário de Minas, do Globo, velhos exemplares da Manchete, da O Cruzeiro, da Cigarra, da Joia, da Ilusão. E garrafas de água sanitária Globo, de cachaça Massangano, de Creme de Ovos Dubar, de Martini, essas garrafas que não tinham retorno.

– Tem pão velho, dona?

Quase todo dia alguém passava pela casa da Rio Verde pedindo pão velho. Era assim mesmo que falavam: Tem pão velho, dona?

Minha mãe guardava pão velho num saco de pano branco que se fechava com uma cordinha pra não entrar barata. Quando alguém pedia pão velho, ela enfiava a mão e tirava um meio murcho, nunca um pão duro, mas já meio velho. Passava um pouco de margarina e, num copo americano, colocava café com leite e levava até lá fora. Quando o pão ficava duro, ela colocava os pedacinhos no liquidificador Walita e batia. Virava farinha de rosca, como ela chamava.

– Deus lhe pague, Deus lhe dê saúde e pazera o que mais se ouvia.

Não vejo mais ninguém pedindo pão velho nesse mundo de hoje, onde vivemos enclausurados em prédios cercados por grades de mais de dois metros de altura, cercas elétricas, guaritas blindadas. O pobre que pedia pão velho de casa em casa desapareceu. Hoje são milhares e milhares de pobres perdidos no meio da rua, pedindo qualquer coisa para sobreviver às próximas vinte e quatro horas. Circulo por todos os cantos dessa metrópole e não vejo mais ninguém pedindo pão velho, falando assim: Moço, tem um pão velho pra me dar?

Os muros altos, as grades e as cercas elétricas separaram a fome de um pobre, daquele pão velho que minha mãe guardava num saco de pano branco. Seguir as leis de nosso apartheid é apertar a campainha. Se não souber com quem quer falar, não entra. Por isso, ninguém nunca mais aperta a campainha e pergunta se tem pão velho.

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