

Opinião
As perspectivas para Porto Alegre, que entendeu a importância da aliança progressista na eleição
A cidade que se recupera de uma enchente devastadora preparara-se para despedir, pelo voto, aqueles que a geraram


“Se Maquiavel fala com Gramsci, não é no passado, é no presente. Melhor ainda: no futuro” – Louis Althuser
O ser humano precisa de cultura, para sonhar, alargar horizontes, viajar no tempo e no espaço.
Nesse sentido, Porto Alegre é uma cidade bastante única, com uma quantidade de livrarias per capita acima da média nacional, embora muitas tenham fechado durante a pandemia. A inundação parcial da cidade, em maio do corrente ano, também colocou à prova o setor cultural na capital gaúcha.
Vale notar que as expressões culturais na antiga São Francisco do Porto dos Casais são múltiplas e, dentre elas, não são menores aquelas ligadas à gastronomia.
Os cafés são muitos e trazem uma marca de democracia evidente: mesmo no centro da cidade, decadente como a quase totalidade das capitais brasileiras, é possível encontrar locais agradáveis e, alguns deles, surpreendentes.
É o caso do café Baden, no mezanino do Mercado Municipal, que é o mais antigo do Brasil e muito foi afetado pela inundação do centro histórico.
Além de ser um espaço agradabilíssimo para quem quiser ler, estudar ou trabalhar, o Baden representa, pela simples existência, um ato de resistência, de reafirmação de que aquele espaço do mercado constitui um símbolo para a cultura gaúcha, inclusive por conter um Bará, um orixá que abre caminhos e traz fartura, no centro do edifício histórico.
Mais ainda, o Baden tem um capuccino com leite de aveia que só encontra similar no Santo Eustáquio, o indisputado melhor café de Roma.
E o charme gastronômico de Porto Alegre também se traduz em consciência: o RAW, restaurante vegano no bairro originalmente judeu do Bom Fim, traz um cardápio 100% orgânico, como não encontrei nem no Rio nem em São Paulo, a um preço acessível e não proibitivo para quem quer evitar os litros de agrotóxico que a bancada do boi e o latifúndio monocultor despejam nas nossas gargantas todos os anos.
Demais, a generosidade se traduz não apenas na cozinha esmerada e saudável, mas até nos amplos pratos de cerâmica que te permitem uma experiência gastronômica que não se confunda com a construção forçada de uma cordilheira de comida amontoada.
No mais, a cidade que se recupera de uma enchente devastadora preparara-se para despedir, pelo voto, aqueles que a geraram.Grandes perspectivas se abrem para a capital da participação popular, que soube, como em São Paulo, bem avaliar a importância de uma aliança progressista entre o PT e o PSOL.
O médico e escritor Moacyr Scliar, morador histórico do Bom Fim, que foi palco de vários de seus livros, estará, no céu, orgulhoso de seu bairro e de sua cidade.
Em O corpo encantado das ruas (Editora Civilização Brasileira), Luiz Antonio Simas aduz, sobre os espaços públicos e sua memória: “A morte como o irreversível cessamento das atividades biológicas, sucedida pela decomposição dos sistemas, é pouca coisa. Tudo o que vive tem de morrer. Tudo que morre pode viver pela palavra, pela celebração dos ritos de lembrança e pelo arrebatamento. Tem morto mais vivo e dançando mais do que muito vivo que, ainda que respire, morreu: essa gente que não dança”.
Na mesma obra, Simas acrescenta, referindo-se ao Rio de Janeiro, mas de forma universal: “Há um epistemicídio em curso na cidade. É isso aí mesmo: assistimos ao processo de destruição dos saberes, práticas, modos de vida, visões do mundo, das culturas que não se enquadram no padrão canônico. Relegadas ao campo da barbárie, ou acolhidas como pitorescas ou folclóricas, elas são desqualificadas em nome da impressão de que o hemisfério norte representa o ápice civilizatório da humanidade e de que a história humana só pode ser contada a partir dos marcos e códigos que o Ocidente produziu”.
De forma mais incisiva, conclui: “Cada ataque lançado contra as culturas das ruas do Rio de Janeiro é um tijolo a mais no edifício de uma catástrofe civilizatória. Não podemos silenciar sobre ela. Tirem da cidade o complexo de saberes sofisticados das ruas que nos forjaram; silenciam os batuques que ressoaram nas noites de desassossego, afagaram as almas e libertaram os corpos, e o que sobrará? Corpos sem nomes, disciplinados para o trabalho, aprisionados, fichados, adoecidos, amontoados, desencantados. Corpos mortos em vida numa cidade em que os mortos vivem e dançam como ancestrais”.
Retrocedendo a um dos principais teóricos da política, Nicolau Maquiavel, o historiador francês Patrick Boucheron, em Um verão com Maquiavel (editora L&PM), recorda o que dissera o diplomata florentino em sua obra-prima O príncipe: “Em qualquer cidade, encontram-se dois humores diferentes; e isso vem do fato de o povo não desejar ser comandado nem oprimido pelos grandiosos; e pelo fato de os grandiosos desejarem comandar e oprimir o povo”.
Analisando a obra de Maquiavel, Boucheron sintetiza: “A arte política é como a medicina: uma ciência de singularidades, que consiste em elaborar um diagnóstico…Em outras palavras, a república é baseada na discórdia, é a administração pacífica – posto que equilibrada – dos conflitos…É isso, portanto, a política. Agir de modo que o povo esteja bem organizado. Pois a vida livre, a vida autenticamente livre, é regida pela lei – ou seja, uma norma coercitiva reconhecida por todos. O mais nocivo ao espírito público, escreveu Maquiavel, é ‘fazer uma lei e não a observar; e é ainda pior quando ela não é observada por aquele que a decretou.” Ao que Maquiavel acresceu e esclareceu: “Todas as leis escritas em favor da liberdade nascem da oposição”.
Por isso, à política caberá gerir os conflitos e não buscar extingui-los ou calá-los: eis a questão posta para as eleições municipais que se aproximam.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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