As pernas curtas da autonomia do Banco Central

A condução da política monetária pela burguesia financeira engessa o projeto econômico que recebeu o voto da população.

O presidente do Banco Central do Brasil, Roberto Campos Neto. Foto: Raphael Ribeiro/BCB

Apoie Siga-nos no

O maior empenho dos economistas burgueses continua sendo o de mostrar que a economia de mercado e seus dogmas liberalizantes se equivalem a forças da natureza. Assim como plantas produzem oxigênio, o capitalismo e o livre mercado existiriam desde que o mundo é mundo.

Se estamos falando de uma ciência natural, fica fácil tachar a intervenção humana como antinatural e inconveniente. Foi esta a premissa dos que, em 2021, aprovaram a autonomia do Banco Central: blindá-lo de intervenções políticas, ações artificiais e irracionais que só servem para impedir que plantas façam fotossíntese.

Há inúmeros problemas nessa tese. O primeiro deles e talvez o mais óbvio: tirar o governo do controle implica em passar este controle para alguém. Concorde ou discorde do governo, o processo eleitoral lhe conferiu legitimidade para aplicar seu projeto e cumprir suas promessas de campanha. O BC é um instrumento fundamental para isso, pois é quem está à frente da política monetária. Se não é o povo, por meio do governo e do parlamento que elegeu, que o conduz e o controla, quem passou a ocupar esse espaço?

“Autonomia”, na verdade, significa dar as rédeas do BC para agentes do mercado financeiro.

É neutralizar a vontade do povo, visto como uma massa de ignorantes que precisa de babás. Diferente do governo, esses agentes não foram eleitos pela população. Uma vez que não participaram do processo eleitoral, não têm a obrigação de prestar contas à sociedade. Da mesma forma, a sociedade não tem como cobrar o governo pelas ações do BC, já que é “autônomo”. Assim, arranca-se do controle popular a mais importante instituição financeira do país, impedindo que haja uma política monetária que sirva não ao capital financeiro, mas a quem passou a usar lenha e carvão por não ter mais dinheiro para comprar botijão de gás.

Outro chavão liberal usado para defender a autonomia do BC: a separação entre política e economia. Enquanto esta seria pura técnica, aquela seria humana, falível. A origem dos nossos problemas estaria em deixar que a primeira influencie a segunda. A autonomia do BC seria um dos remédios contra isso.


Campos Neto será presidente do Banco Central por metade do mandato de Lula – Imagem: Marcelo Camargo/ABR

Nada mais infantil. A única economia possível é a economia política. Escolher entregar o BC para a burguesia financeira não nasceu do contato da chuva com o solo. Nasceu de uma decisão política.  O aumento da taxa de juros e os cortes em áreas sociais para garantir o superávit primário e dar “confiança” a investidores não vieram de uma reação química, e sim de decisões políticas. Também as consequências dessas ações: 158 milhões de brasileiros submetidos a algum grau de insegurança alimentar; volta do sarampo; volta da poliomielite; aumento da mortalidade infantil; genocídio do povo Yanomami.

Ainda no campo das infantilidades, o livre mercado, principal abstração usada pelos defensores da autonomia, não existe objetivamente. Trata-se de algo construído a partir da história. Na Inglaterra do início do século XIX, livre mercado era crianças de 10 anos trabalhando em fornalhas durante jornadas de 15 horas. No Brasil da mesma época, era gente de pele negra sendo vendida como bicho. Hoje, não mais (em regra). Mas existe quem defenda o garimpo ilegal e predatório a partir da liberdade. Só não a de povos indígenas.

A condução da política monetária pela burguesia financeira engessa o projeto econômico que, submetido às urnas, recebeu o aval da população. Se o novo governo pretende reindustrializar o país, tirando-o da condição primário-exportadora, o BC tem um papel um importante nisso. Mas seus atuais dirigentes não têm interesse que o Brasil deixe de ser um mero exportador de commodities. E agora?

Cabe aos economistas neoclássicos mascarar os catastróficos resultados das medidas neoliberais adotadas nos últimos anos, explicando que é normal dever a alma a bancos e que alguns milhões de pessoas passem fome – ou que isso não é consequência da política econômica adotada desde 2016.

A mentira teria durado até 2018, se Lula não tivesse sido interditado eleitoralmente, em mais uma tentativa de instituir uma democracia sem povo. Mas durou até 2022. A autonomia do BC, por mais que se esforce, não vai aumentar suas pernas.

Para proteger e incentivar discussões produtivas, os comentários são exclusivos para assinantes de CartaCapital.

Já é assinante? Faça login
ASSINE CARTACAPITAL Seja assinante! Aproveite conteúdos exclusivos e tenha acesso total ao site.
Os comentários não representam a opinião da revista. A responsabilidade é do autor da mensagem.

0 comentário

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.