

Opinião
As penas do 8 de Janeiro
É preciso deixar para a história o recado contundente de que esse tipo de manifestação autoritária jamais será aceito


Pela primeira vez na história brasileira optamos por resolver uma crise humanitária fruto do autoritarismo em sua dimensão pública. Nossa democracia e símbolos dos poderes constituídos da República foram, sem precedentes, desafiados. Atos de violência visaram implementar um golpe e abolir o Estado Democrático de Direito.
Ao julgar os atos golpistas de 8 de janeiro, o Supremo Tribunal Federal começou a responsabilizar, mediante observância do devido processo legal e aplicação estrita da lei penal, os acusados de atacar as instituições democráticas e o próprio sistema de direitos. Historicamente, o modo tradicional de resolução das crises humanitárias em nosso País deu-se pela composição elitista a partir de soluções privadas negociadas, em prejuízo dos mecanismos públicos de restauração dos valores democráticos.
O processo histórico que levou ao fim da escravidão, por exemplo, foi viabilizado a partir da indenização dos senhores de escravos e na “Lei do Ventre Livre” em outro momento, em detrimento de uma forma de solução pública e democrática que possibilitasse a emancipação verdadeira dos ex-escravizados. Após a ditadura, promoveu-se a reparação indenizatória aos exilados, presos e torturados pelo regime. Aos tiranos e torturadores restou, porém, a impunidade caracterizada pela ausência de responsabilização jurídica e histórica.
De volta aos dias de hoje: é importante dizer que os atos golpistas não podem ser encarados como mera deterioração de bens públicos. As provas são abundantes no sentido de demonstrar a intenção de depor um governo legitimamente constituído e abolir o Estado Democrático de Direito. A circunstância de não terem consumado seu intento não atenua responsabilidades, na medida em que tais crimes se caracterizam, imediatamente, pela tentativa. Não se trata de particularidade do ordenamento brasileiro, mas de uma imposição lógica.
A invasão e a destruição dos prédios que simbolizam os poderes de Estado, com a intenção de promover intervenção militar e depor o governo eleito, atentaram contra a própria existência da democracia constitucional brasileira. Não podemos admitir a manipulação retórica do discurso da defesa de direitos individuais dos golpistas para proteger a tentativa de destruição dos mecanismos públicos de defesa dos direitos de todos. Tivessem os bolsonaristas obtido êxito em seu propósito golpista, o sistema de justiça e a proteção dos direitos fundamentais teriam perdido totalmente a sua eficácia, o que revela a gravidade e a reprovabilidade social das condutas.
No direito penal, costuma-se apontar dupla função da pena. Em primeiro lugar, a imposição de sanções criminais é encarada como retribuição à prática de condutas socialmente reprovadas e tipificadas em lei como tal. Em segundo lugar, possui função preventiva, pois, em sua dimensão social, desempenha o efeito pedagógico de reafirmar os valores civilizatórios e inibir comportamentos indesejáveis.
Assim considerando, a preservação da democracia reclama uma inédita solução pública para as aventuras autoritárias. O Supremo, em boa hora, promove avanços civilizatórios quanto aos mecanismos públicos de defesa do sistema de direitos em face dos ataques perpetrados. Tais condutas devem ser rigorosamente sancionadas nos termos da lei, impondo-se a devida responsabilização aos executores e, com maior severidade, aos mandantes e financiadores dos atos golpistas, que simbolizam o mais violento crime político em uma democracia constitucional.
O Supremo merece, sem favor algum, o reconhecimento do seu invulgar papel na defesa da democracia. A responsabilização criminal ocorre, no geral, de forma adequada. Ressalvamos, em especial, que deveria ser afastado o bis in idem entre os crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e de golpe de Estado, consoante acertado posicionamento vencido do ministro Luís Roberto Barroso.
A intentona golpista de 8 de janeiro de 2023 é, certamente, o maior ato de agressão à democracia brasileira desde o fim da ditadura, na década de 1980. No plano constitucional, a responsabilização criminal deve ser suficientemente intensa para dissuadir qualquer nova manifestação dessa natureza.
É preciso deixar para a história o recado contundente de que esse tipo de manifestação autoritária jamais será admitido, o que não impede que o presidente da República, em nome da pacificação social e humanitariamente, conceda indulto para determinados condenados que não tenham sido mandantes ou financiadores dos atos golpistas. •
Publicado na edição n° 1280 de CartaCapital, em 11 de outubro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘As penas do 8 de Janeiro’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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