Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

As novenas de Dona Lali

Ela sabia de cor o dia de cada santo. Sabia também os poderes de cada um. Quem era o santo que protegia os olhos, os motoristas, os namorados, a televisão, um santo pra cada problema

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Minha mãe era uma figura, se não, uma peça, como a mãe do Paulo Gustavo. Mineira que só, ela tinha medo de dormir no escuro, na verdade, ficar de olhos abertos na escuridão. Só dormia com a cabeça coberta e não levantava à noite pra fazer xixi nem a pau. Morria de medo de encontrar no banheiro, uma pessoa já morta, viva. Ela tinha muito medo dos mortos e vivia falando: quando eu morrer, se puder voltar, podem ter certeza que eu volto. Nunca voltou.

Mas eu estou aqui hoje pra falar das novenas de Dona Lali. Católica que só, ela tinha um verdadeiro arsenal para, no decorrer dos dias do mês, ir cumprindo com suas novenas, suas promessas. Novenas que ela guardava na gaveta do criado mudo, papeizinhos de todos os tamanhos e formatos, alguns maltrapilhos e maltratados.

Todo fim de mês, era sagrado. Lá pelo dia 29, 30… ela anunciava: está chegando o dia da minha novena. Ela tinha várias novenas, mas a que começava no dia primeiro era a mais importante, a que ela mais punha fé.

Todo primeiro dia do mês, ela acendia uma vela no altarzinho que tinha no quarto e, de noite, fazia suas rezas. No altar, tinha um busto de Cristo com o coração à vista, cercado de uma coroa de espinhos e gotas de sangue. Cristo apontava para o seu peito como quem quisesse dizer alguma coisa do tipo, aqui está o meu coração ferido.

Por falar em vela, ela era apaixonada por velas. Assim que o meu pai pegava o avião da Varig com destino à cidade maravilhosa, ela acendia uma vela. Dia de prova de qualquer um dos cinco filhos, ela acendia uma vela. Quando alguém adoecia, lá estava a vela acesa. Para ela, uma vela acesa era a garantia de que a situação estava sob controle.

Ela sabia de cor o dia de cada santo: 28 de agosto, Santo Agostinho; 13 de junho, Santo Antônio; 13 de dezembro, Santa Luzia; 15 de agosto, Nossa Senhora Achiropita; 8 de dezembro, Nossa Senhora Desatadora dos Nós; 24 de junho, São João; 29 de junho, São Pedro; 23 de abril, São Jorge e por aí vai.

Sabia também os poderes de cada um. Quem era o santo que protegia os olhos, os motoristas, os namorados, a televisão, os enfermos, um santo pra cada problema.

Minha mãe andava com fé, ninguém tinha dúvida disso. Menino engasgava, bastava ela dizer São Brás com todo vigor que o engasgo passava. Chuvas, raios e trovoadas, lá vinha ela: Santa Bárbara! Nessas horas, ninguém podia ficar perto de faca, tesoura, nem mesmo uma gilete que apontávamos o lápis.

Algumas coisas eram bem particulares. Quando alguém perdia um objeto qualquer, não era pra São Longuinho que ela apelava. Dizia: Reza pra Aparecida que você acha! Aparecida era uma prima que morreu de câncer muito cedo e marcou nossa vida porque sentia dores terríveis no leito de um hospital, mas nunca reclamou. Tinha sempre um sorriso nos lábios, apesar do sofrimento.

Até hoje quando não sei onde foi parar o meu celular, o livro que estava lendo, os óculos, me passa pela cabeça: reza pra Aparecida que você acha. Por falar nisso, não tenho a menor ideia de onde pus o controle da televisão.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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