Thais Ferreira

Vereadora do Rio de Janeiro pelo PSOL e ativista social filiada ao Movimento Negro Unificado (MNU)

Opinião

Às mulheres negras ou afegãs não interessa um feminismo civilizatório

Produção intelectual de mulheres negras e muçulmanas nos obriga a questionar uma visão racista e eurocêntrica sobre o Afeganistão

Cabul, capital do Afeganistão. Foto: Wakil Kohsar/AFP
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O que mais temos assistido pelas mídias brasileiras desde que vieram à tona as notícias da tomada do poder no Afeganistão pelo grupo Talibã são debates que giram em torno de uma suposta preocupação feminista com os direitos das mulheres naquele país.

A abordagem principal dos veículos enfatiza que a saída das tropas dos Estados Unidos abriu uma janela de oportunidade para um grupo local marcado pela irracionalidade religiosa e o perfil retrógrado em relação aos direitos humanos. Ou seja, aponta que a saída do poder militar branco-ocidental retirou daquele território a sua “tábua de salvação para modernidade”. E a situação das mulheres seria a prova.

A produção intelectual das mulheres negras e/ou muçulmanas, no entanto, nos obriga a colocar em questionamento essa visão. Porque ela é racista e eurocêntrica. Objetivamente, foram as mulheres as principais vítimas de todas as interferências coloniais desde o início das dominações estrangeiras, e não a parcela da população mais protegida por elas.

Foram as mulheres que, como se verifica facilmente pelos indicadores, acumularam a exploração nacional e econômica com a exploração sexual e pelo trabalho não-remunerado (abaixo ainda dos homens racializados e nas periferias do mundo). Foram as mulheres que se tornaram a parcela mais pobre e precarizada na medida que os conflitos e a violência sectária tomaram conta, aumentando o desemprego e a quantidade de viúvas e mães solo de soldados ou combatentes.

Uma das vozes mais reconhecidas na contestação da perspectiva que chamou de “feminista civilizatória” é François Vèrges, presidente do Comitê Nacional pela Memória e História da Escravidão, na França. Ela nos adverte que um certo tipo de feminismo “adotou e adaptou os objetivos da missão civilizatória colonial, oferecendo ao neoliberalismo e ao imperialismo uma política dos direitos das mulheres que serve a seus interesses. (…) Esse feminismo legitimou uma divisão entre uma sociedade aberta ‘por natureza’ à igualdade entre mulheres e homens (a europeia) e as sociedades por natureza hostis à igualdade (todas as outras, mas principalmente a muçulmana).”

Aqui no Brasil, outras mulheres negras, como Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro, em sentido semelhante, buscaram ressaltar nos seus trabalhos como o estilo de vida das mulheres brancas é inseparável da sua liberação de tarefas como limpar a própria casa, cuidar dos filhos, ou de passar horas no transporte público e da garantia da sua integridade física, em uma realidade que, pelo inverso, é predatória das mulheres não-brancas nos mesmos sentidos.

Essas contribuições nos servem para “desnaturalizar” a noção de liberdades das mulheres brancas, interpretando seu feminismo como inseparável da herança colonial e racista. Em outras palavras, fundamenta na divisão internacional do trabalho e na colonialidade, inclusive em seus aspectos mais duradouros, a formação de demandas políticas que não podem ser afastadas do histórico de segregação para serem apresentadas como universais.

Podemos aqui lembrar as mulheres que não podiam se divorciar, estudar ou frequentar eventos públicos, no Brasil ou na Europa, décadas atrás, mas que ainda podiam explorar o trabalho de pessoas negras. Essa dinâmica evidencia que a questão racial se apresenta mais importante, como uma estrutura anterior à divisão dos gêneros, e que influencia mais nas determinações das condições de vida.

É preciso dizer que quando nós assistimos pela televisão sugestões de que a catastrófica intervenção militar no Afeganistão teria sido, na verdade, uma missão de apreço pelas liberdades das mulheres isto não passa de instrumentalização de objetivos supostamente feministas pode legitimar o colonialismo e o racismo. O retrato principal ali é um rastro de destruição, com fuga de 1\3 da população do país, desestabilização social, fragmentação das possibilidades de cooperação e comunitarismo – o que se fez como objetivo “tático” de dominação pela potência estrangeira. Houve uma piora generalizada das condições de vida, e como já havia desigualdade entre homens e mulheres, a deterioração foi ainda mais sentida justamente pelas mulheres, em particular pelas que também são racializadas naquele contexto.

Não há evidências de que as mulheres afegãs, exceto dentro da elite instituída, tenham melhorado de vida após o assassinato de mais de 300 mil dos seus compatriotas a partir de 2001 pelos soldados da OTAN. Como não há no Rio de Janeiro mulheres negras sendo salvas por Unidades de Polícia Pacificadora (conclusão que é a tese de mestrado de Marielle Franco). Ao contrário, as evidências sugerem que a potencialização da violência racista proporciona efeito devastador para todos os membros da etnia violentada, sejam homens ou mulheres, ainda que caibam respectivamente aos papéis de gênero formas próprias de exploração.

Não escrevo estas palavras com nenhuma intenção de discutir especificamente o Talibã e suas raízes, trabalho que caberá a cientistas e pesquisadores atuando nessa seara. O que me provoca, principalmente, é perceber como 20 anos de guerra levada à cabo por meio da produção de preconceitos contra, e que em geral são recorrentes sobre os povos não-brancos e\ou não ocidentais, ainda podem passar ausentes nas conclusões de certa intelectualidade que insiste em se apegar a “pequenas cotas de representação no topo da pirâmide social” ou “casos extraordinários de meritocracia” para retratar seletivamente a situação das mulheres e propagandear o modo de vida delas como um lugar que deveria ser protegido a qualquer custo, inclusive o custo genocida das demais.

Não aceito as premissas que diversos países atualmente utilizam para dificultar a obtenção de vistos ou cidadania aos muçulmanos e\ou aos povos racializados. Não aceito que, onde festas cristãs e de matriz europeia, como Natal e a Páscoa foram totalmente incorporadas como cultura nacional, haja hostilidade às afirmações dos praticantes de outros credos sob o disfarce da laicidade. Isto não é bandeira “das mulheres”. Nos EUA fazem isso contra os muçulmanos, como no Brasil fazem com adeptos do candomblé e da umbanda. As vítimas deste cinismo, nós sabemos, somos todos nós, mulheres ou homens que compartilham as características do povo estigmatizado e transformado em caricatura para ser odiado por uma propaganda que serve aos interesses do Capitalismo.

Como nos ensina o Movimento de Mulheres Negras, não há superação da desigualdade entre os gêneros sem a superação da desigualdade colonial que, inicialmente, foi o que implementou essa desigualdade entre nós. Também não haverá sucesso na superação dos aspectos remanescentes da violência do colonizador sem uma verdadeira cooperação entre nós, reconhecendo toda nossa diversidade de gêneros e o papel fundamental que as mulheres ocupam.

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