Aldo Fornazieri

Cientista político, autor de 'Liderança e Poder'

Opinião

As guerras do nosso tempo servem para quê?

Além dos custos imensos, elas provocam o ódio e a insurgência dos povos dominados, o que se torna contraproducente para o exercício da hegemonia

As guerras do nosso tempo servem para quê?
As guerras do nosso tempo servem para quê?
Um homem passa por uma tela de transmissão digital transmitindo notícias do conflito entre a Rússia e a Ucrânia na Bolsa de Valores de Bombaim (BSE) em Mumbai em 24 de fevereiro de 2022. Foto: Indranil MUKHERJEE / AFP
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A partir da década de 1990, marcada pelo colapso da União Soviética, cresceu o número de estudos acerca do possível declínio das guerras. Essa questão vinha sendo posta em décadas anteriores, como consequência do período de paz relativa no pós-Segunda Guerra Mundial e da aversão ao risco que as duas superpotências (EUA e URSS) alimentaram durante a Guerra Fria. Com a nova ordem criada a partir de então, a sensação de que o mundo estava vivendo um período de paz mais longo nas relações interestatais cresceu, mesmo com a chamada Guerra ao Terror, promovida pelos EUA e envolvendo o Iraque, o Afeganistão e a Al-Qaeda.

A maior parte dos estudos toma como ponto de referência o número de mortos em batalhas. Os estudiosos chegaram a poucas conclusões exaustivas até agora, por causa do relativismo dos dados. Eles mostram, por exemplo, que, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, houve um declínio relativo do número de mortos por milhão de habitantes em conflitos armados. O risco de morrer em guerras entre 1947 e 2007 foi 66% menor do que de 1816 a 1946. Mas os mesmos estudos indicam que as duas guerras mundiais representaram uma elevação exponencial do número de mortes em relação às décadas anteriores. Então, a tendência não é conclusiva.

Os estudos enfrentam problemas metodológicos, como a arbitragem dos recortes temporais para comparação e a falta de consenso acerca da classificação da importância das guerras. A maioria dos estudos indica que, a partir dos anos 1990, estabeleceu-se um período mais consistente de paz relativa que, agora, pode ter sido quebrado com esta guerra na Ucrânia.

Talvez a pergunta que os estudiosos devessem acentuar fosse outra: As guerras do nosso tempo servem para quê? Note-se que os conflitos mais importantes do pós-Segunda Guerra Mundial – excetuando-se as guerras árabes-israelenses, as de libertação colonial na África e as indo-paquistanesas – envolveram as potências imperiais dos EUA e da ­Rússia. Os norte-americanos se envolveram diretamente nas guerras das Coreias, do ­Vietnã, do Iraque, do Afeganistão, da Síria e da ­Líbia. A Rússia envolveu-se, entre outras, em guerras no Afeganistão, na Chechênia, na Geórgia, na Síria e na Crimeia.

Em todos os tempos, as potências imperiais usam as guerras para se expandir. Isso ocorre por meio da exportação dos excedentes militares, religiosos, industriais, financeiros e comerciais. Mas as guerras também foram um dos principais fatores de declínio dessas potências, vide o caso dos persas, macedônios, romanos, germanos, francos, britânicos etc.

As guerras exaurem os excedentes exportáveis, reduzem as capacidades distributivas internas, aumentam os conflitos internos das potências e, por fim, provocam o seu declínio. Em termos militares ­e/ou políticos, os EUA perderam ou não ganharam as guerras do Vietnã, do Iraque, do Afeganistão e da Síria. Os custos elevadíssimos desses conflitos e com a manutenção da máquina militar são apontados como fatores de declínio relativo dos EUA.

Os russos perderam a guerra no Afeganistão e, mesmo que saiam militarmente vitoriosos da Ucrânia, colherão uma derrota política e econômico-financeira. A Rússia tem capacidade limitada de exportação de excedentes e pode acelerar o declínio de seu poderio. Acrescente-se que a China, que não adota uma estratégia de exportação de excedentes militares por meio de guerras, vem obtendo vantagens relativas de poder tanto em relação aos EUA quanto à Rússia.

O que o mundo pode estar vivendo a partir do século XXI, quando o poder mundial se tornou multipolar, é o declínio da importância das guerras como fator de constituição de poder hegemônico. Além dos custos imensos, elas provocam o ódio e a insurgência dos povos dominados, o que se torna contraproducente para o exercício da hegemonia. Os grandes estrategistas de todos os tempos sempre asseveraram que nenhuma potência mantém a hegemonia puramente pela força.

No caso da guerra na Ucrânia, além do custo militar e político, a Rússia arcará com o forte impacto das sanções econômicas e comerciais. E se a Rússia é, de fato, uma potência militar, não o é do ponto de vista econômico e financeiro, aspectos fundamentais para a manutenção de máquinas de guerra por tempo prologando. Na era das comunicações digitais a opinião pública dos povos não quer ver a destruição e a morte, e isto tem peso nas decisões dos governos e das corporações. Os agredidos obtêm a empatia e os agressores, o repúdio. O temor de uma guerra nuclear e os graves problemas ambientais e sociais geram aspirações de um mundo de paz e de soluções para esses problemas. Um mundo menos violento e mais humanizado são aspirações que se chocam contra as guerras. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1200 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “As guerras ainda são importantes?”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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