Justiça

As filigranas de Deltan e os rinocerontes no Fusca

Ignorar revelação de sincericídio de Deltan quando da liberação ilegal dos áudios entre Lula e Dilma é mais uma árdua tarefa para lavajistas

Foto: José Cruz/Agência Brasil
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Descolar-se da realidade é estratégia corriqueira quando o assunto é manter as coisas como estão. As narrativas ideológicas de sustentação da ordem social vão da delegação divina de poderes ao soberano (caso dos regimes feudais, escravagistas e absolutistas) à meritocracia e às liberdades formais próprias da apologética capitalista.

Já tivemos a oportunidade de demonstrar que, uma vez sendo política a prisão de Lula, sua libertação também deve se dar por essa via. Mostramos da mesma maneira como o êxito das disputas judiciais está diretamente relacionado à correlação de forças “fora” do poder judiciário.

Para além do limitado horizonte do idealismo que o coloca como um terceiro responsável por impor limites à selvageria das disputas políticas, o judiciário não está acima do tabuleiro, sendo ele próprio uma peça. A essa altura do campeonato, acreditar que ministros, juízes e procuradores não se agendam politicamente é fechar os olhos para a realidade.

É esse o contexto no qual se insere a Lava Jato, pródiga em utilizar artifícios ideológicos surreais para se sustentar. Talvez seja o messianismo a mais notória dessas artimanhas, professada com orgulho pelo ícone do lavajatismo Deltan Dallagnol. Matéria da Folha de S. Paulo do dia 08 de setembro mostra mais uma vez como a autoestima dos procuradores e do ex-juiz Moro, autoproclamados enviados dos céus, autorizou-os a adotar a tática do vale-tudo para inviabilizar que Lula assumisse a Casa Civil, minando, naquele 16 de março de 2016, a sobrevivência do governo Dilma.

É provável que as novas mensagens divulgadas pela Folha sejam as mais explosivas desde o início da série. Depois de reconhecer a fragilidade da decisão de Moro que tornou públicos os áudios das conversas entre os ex-presidentes, Deltan sintetiza o espírito do lavajatismo ao buscar justificar o desrespeito à lei afirmando que “a questão jurídica é filigrana dentro do contexto maior que é político”.

A opinião pública favorável é mencionada como um fator que daria amparo às infrações do ex-magistrado, portador de um cheque em branco que, certamente assinado por Deus, o fez esconder 22 conversas de Lula que levavam abaixo a tese de que sua nomeação para a Casa Civil tinha o foro privilegiado como meta. Se a Constituição não cuidou de abençoá-lo com o poder de passar por cima da lei, foi Ele que assim o fez.

A narrativa adotada pelo lavajatismo gira em torno de uma espécie de poder-dever outorgado por Deus para que seus agentes desinfetem o Brasil da corrupção.

Em uma democracia liberal, atribuições de cargos e funções públicas não costumam vir de divindades, mas da lei e, no caso do MPF e da magistratura, da própria Constituição. Mas esta, tendo o infortúnio de prever coisas como o devido processo legal e a presunção de inocência, passou a ser vista como uma inimiga em meio à guerra santa dos procuradores. Na queda de braço entre Deus e a lei maior, quem venceu foi o ministro Luís Roberto Barroso, transbordante em suas firulas interpretativas.

Mito por mito, se a apropriação dos frutos do trabalho alheio no capitalismo se legitima numa suposta liberdade, o atropelo de garantias constitucionais se justifica na missão divina de limpar o país. O mais interessante é que a democracia burguesa, com todas suas garantias, é a legítima forma política e institucional do modo de produção capitalista.

O que acontece é que, como expressão de suas contradições sistêmicas, basta que princípios democráticos se tornem circunstancialmente um obstáculo à acumulação e ao lucro para que seu desrespeito ocorra com menos vergonha e mais intensidade do que já acontece em condições normais de temperatura e pressão.

É este modus operandi, inerente ao capitalismo, que nos permite concluir que Deltan não está de todo errado ao qualificar o respeito à lei como uma filigrana. Acaba sendo, em certa medida, admiravelmente honesto ao não usar argumentações jurídicas para sustentar as decisões de seu ex-chefe.

Inviabilizar Lula e o projeto que representa, prendendo-o e tirando-o do jogo eleitoral, era fundamental para que a rapina que hoje se encontra em curso no país saísse do papel. Não é juridicamente que se consegue isso, para o desalento dos que alimentam o sonho de um sistema de justiça imparcial e republicano.

Tanto o golpe de 2016 como a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro não seriam possíveis sem um judiciário que transita entre o ativismo e a complacência. Muito menos se princípios da democracia burguesa, dos quais são os juízes os seus garantidores institucionais, tivessem sido respeitados. Encontrou-se na retórica divina o álibi perfeito para que, instaurada a inquisição moralista do tenentismo togado, nascesse o regime de exceção necessário para a implosão da tímida social-democracia brasileira.

Numa das conversas, Dallagnol celebra o apoio público à Lava Jato, dizendo ao então juiz Moro: “Seus sinais conduzirão multidões, inclusive para reformas de que o Brasil precisa, nos sistemas político e de justiça criminal”. Em abril de 2018, nos dias que antecederam a prisão de Lula, o procurador publicou no Twitter que estaria em jejum e oração para que o ex-mandatário fosse preso. Ele e o atual ministro da justiça não cansam de sugerir que criticar a Lava Jato não é apenas sinônimo de heresia, mas de filiação às satânicas hordas corruptas que tão heroicamente julgam combater.

Mas mesmo uma fé como a de Deltan não está a salvo de abalos. Nos primeiros vazamentos, as mensagens mostraram um procurador hesitante diante das provas de que dispunha contra o ex-presidente Lula. Chegou a se confidenciar com Moro acerca de suas incertezas, recebendo do ex-juiz uma palavra de incentivo e amizade. Deltan também via como incerta a tese de que o processo deveria correr junto à vara do seu confidente e amigo.

Como a bajulação acrítica, a miséria intelectual e a fraca interdisciplinariedade são componentes pedagógicos da formação de nossos juristas, ainda hoje não faltam especialistas que, movidos por uma devoção cega, tentam de forma constrangedora defender os abusos da dupla.

Respondendo à matéria da Folha, o site O Antagonista, de longe o maior expoente do lavajatismo na imprensa, dedicou algumas poucas linhas em defesa de Moro, fazendo vista grossa à informação de que o juiz analisou e ignorou deliberadamente as 22 conversas de Lula grampeadas após a ordem de interrupção da escuta. Repita-se: tais diálogos põem uma pá cal no áudio do “Bessias”, mostrando que sua vacilante intenção de assumir a Casa Civil, era, de fato, a de recolocar nos eixos a articulação política do governo Dilma, e não de obstruir a justiça.

Por mais que a cada dia fique mais nítido o fanatismo truculento de Deltan e Moro, nada parece ser suficiente para sensibilizar os fiéis acólitos do lavajatismo, indiferentes à insossa resposta padrão que publicam a cada leva de mensagens divulgadas e aos sucessivos recibos que vêm passando acerca de sua veracidade. Faça chuva ou sol, há sempre quem esteja disposto a tentar colocar rinocerontes num Fusca.

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