Rodrigo Ianhez

Rodrigo Ianhez é historiador especialista no período soviético e mora em Moscou há mais de uma década.

Opinião

As especulações e incertezas sobre o atentado em Moscou

Ainda um quebra-cabeça incompleto, o ataque demonstra fragilidade em um momento crucial de conflito militar nas fronteiras russas

Corpos são retirados do local do atentado. Foto: Olga MALTSEVA / AFP
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Levaremos anos para esclarecer determinados fatos da política internacional – se é que algum dia conseguiremos, tendo em vista que eventos como o assassinato de John Kennedy, passado mais de meio século, permanecem envoltos em controvérsia. Desde a eclosão da guerra na Ucrânia, aumentou consideravelmente a quantidade de ocorrências circundadas de polêmicas sobre sua natureza e autoria.

Esse é o caso, em particular, de eventos que envolvem a Rússia. Para ficar apenas nos exemplos mais recentes, restam mais perguntas do que respostas em torno da sabotagem ao gasoduto Nordstream, da morte do opositor russo Alexei Navalny e mesmo de episódios já em grande parte esquecidos no Ocidente, como a destruição da barragem de Kakhovka, no rio Dniepre. 

Todos esses fatos já deveriam ter servido para incutir ao menos um pouco de cautela aos analistas mais apressados. É preciso cuidado com os vaticínios sobre a Rússia! Não me excluo desse alerta: tomei a amarga pílula da frustração quando minha declarada certeza da não-invasão da Ucrânia entrou em choque com a realidade em fevereiro de 2022. 

Quando, em novembro do fatídico ano de 2022, um míssel matou dois civis em território polonês, muitos passaram a rufar com ainda mais vigor os tambores da guerra. Foram poucos aqueles que, em um primeiro momento, questionaram a versão apresentada por Zelensky de que seriam os russos os responsáveis. Em um raro lapso de prudência, o presidente estadunidense Joe Biden contradisse seu colega ucraniano ao estabelecer que se tratava de um míssel anti-aéreo da própria Ucrânia. 

A mesma sombra de incerteza paira sobre os eventos de 22 de março, em Moscou. O horrendo ataque terrorista que ceifou a vida de pelo menos 139 pessoas no teatro Crocus City Hall entrou para a história como um dos mais violentos da Rússia. Diante das presentes circunstâncias, a possibilidade de envolvimento ucraniano foi prontamente aventada. No plano oficial, tão veloz quanto a negativa de participação por Zelesnky, foi o surgimento de acusações e insinuações por parte de algumas autoridades russas mais histriônicas. Com o passar dos dias, as sugestões de envolvimento da Ucrânia seguem em vigor: desde declarações menos categóricas por parte de Pútin até ameaças abertas vindas de figuras como Medvedev e mesmo da imprensa russa.

Não se pode ignorar o fato de que Ucrânia já se valeu de atentados em território russo e de que as forças de segurança do país são suspeitas de mataram ao menos duas figuras de destaque: Dária Dúguina, filha e discípula do filosofo proto-fascista russo Alexandr Dúguin e Vladlen Tatarsky, blogueiro e propagandista pró-guerra. Em ambos os casos, a Ucrânia nega seu envolvimento. Quanto aos ataques contra a ponte da Criméia, o governo de Zelensky assumiu a autoria daquilo que considera uma ação contra um “legítimo alvo militar”. Tais operações, no entanto, contrastam fortemente com a violência despropositada que observamos no Crocus City Hall. De tal modo que não se pode excluir a hipótese aparentemente fácil de participação ucraniana, mas se deve atentar para as armadilhas que ela pode esconder.

Esticando a corda um pouco mais na teoria de participação de atores envolvidos na guerra da Ucrânia, alguns aventaram a possibilidade de envolvimento ocidental no planejamento do ataque. Uma das primeiras queixas endereçadas ao Ocidente pelo governo russo, numa época em que Putin admitidamente estava aberto até mesmo a discutir uma eventual entrada da Rússia para a Otan, seria a de que os Estados Unidos teriam apoiado grupos extremistas do Norte do Cáucaso, nos anos 2000. Nesse período, a Rússia cumpria diligentemente o papel de aliada do Ocidente na infame Guerra ao Terror, tendo, inclusive, costurado acordos por meio dos quais os EUA arrendaram bases militares em ex-republicas soviéticas na Ásia Central, nominalmente no Uzbequistão e no Quirguistão 

E, no entanto, o ataque foi reinvindicado por um braço afegão do Estado Islâmico. Além disso, o grupo terrorista divulgou vídeos chocantes do atentado, gravados em primeira pessoa. O protagonismo assumido pela Rússia na Guerra Civil Síria contra as forças do Estado Islâmico, além de prisões realizadas no início deste mês em território russo de indivíduos suspeitos de serem membros do grupo extremista também apontam para a provável autoria. Ainda assim, ficam questões no ar, como a diferença do modus operandi em relação àquele usual para o Estado Islâmico: os terroristas – cidadãos tajiques com residência na Rússia – segundo a própria admissão, teriam sido contratados para realizar o ataque, com a promessa de receberem a soma relativamente pequena de 5 a 10 mil dólares. 

Mais um elemento complica o quadro: os suspeitos foram capturados em fuga na província de Briansk. O governo russo imediatamente afirmou que os elementos estariam tentando atravessar a fronteira – obviamente militarizada – com a Ucrânia. Por outro lado, o presidente bielorrusso, Alexander Lukashenko, contradisse o Kremlin: os terroristas estariam se dirigindo para Belarus.

De toda forma, o próprio Putin afirmou que os perpetradores seriam extremistas islâmicos, mas deixou no ar uma suspeita quanto aos mandantes. Não são poucas as vozes que apontam para o envolvimento do governo dos Estados Unidos na gênese de grupos terroristas como o Estado Islâmico. Os EUA tem um histórico inegável de uma soberba imperial que acaba por criar seus próprios monstros. O dilema, porém, não é tanto o quanto o Pentágono consegue manipular habilmente essas criaturas de acordo com os interesses, senão justamente o contrário: rapidamente os estadunidenses perdem o controle sobre tais grupos, que acabam se voltando contra os próprios EUA. O caso mais famoso é Bin Laden – de freedom fighter contra os soviéticos no Afeganistão para flagelo da América. Mas, podemos lembrar também de Saddam Hussein e da Revolução Iraniana, gestada das frustrações acumuladas desde a derrubada de Mossadegh com apoio da CIA.

Finalmente, sem querer brincar com uma hipótese verdadeiramente absurda (e um tanto ofensiva, dadas as circunstâncias) de operação de bandeira falsa, ou seja, de que os próprios russos teriam organizado o atentado para se beneficiar politicamente dele, podemos analisar brevemente a tese, ainda que ela não se sustente ao mínimo escrutínio. Em poucas palavras, o atentado realizado no coração da Rússia demonstra fragilidade em um momento crucial de conflito militar nas fronteiras, contradiz o presidente Putin – que havia minimizado a ameaça após alertas emitidos pelo governo dos EUA poucos dias antes – e escancara uma resposta lenta dos esforços anti-terroristas em Moscou. Além disso, as autoridades apresentam novas versões a cada momento, mostrando que não havia uma narrativa oficial preparada para capitalizar com a comoção no país. Em suma, os fatos evidenciam que os russos foram pegos desprevenidos. 

Estamos diante de um quebra-cabeça incompleto. Como em inúmeras outras situações envolvendo a Rússia, restam mais perguntas do que respostas e, no entanto, a pressa em respondê-las acaba por obscurecer ainda mais os fatos ao invés de esclarecê-los. Aguardemos.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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