Opinião

As Boas Festas

‘Nada melhor do que a arte para encontrar os caminhos da utopia em meio às trevas’ 

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“Os poderosos podem matar uma, duas ou três rosas, mas jamais conseguirão deter a primavera inteira”.
Che Guevara
Essa verdade condiz com a entrada do verão, em meio a tantas dificuldades no mundo e, principalmente, no Brasil.
Sob um desgoverno incapaz, genocida e neocolonial, a população vê o número de mortes aumentar exponencialmente, seja pela covid 19, seja pelas doenças relacionadas à fome e à desnutrição ou por aquelas cujo tratamento foi preterido pela covid.
Em janeiro, sem a parca ajuda emergencial, a fome deverá flagelar ainda mais o país.
Em tempos tão difíceis, temos de buscar nas memórias – nossa arqueologia imaterial – as fontes de vida, riqueza e sabedoria. Deparei-me, assim, com a obra de Luciana Hidalgo, Arthur Bispo do Rosario – O Senhor do Labirinto (Editora Rocco).
A leitura é especialmente valorosa, no momento em que os setores mais reacionários buscam fazer a atenção psiquiátrica retroceder ao velho modelo hospitalar, que beneficiava apenas os donos dos hospitais.
A obra de Luciana Hidalgo nos recorda que mesmo em um simulacro de inferno, como eram os hospitais psiquiátricos até a desmanicomialização dos anos 80, a utopia, o desejo do bem, da saúde, da felicidade vicejavam.
Negro, pobre, nordestino, alienado mental e artista Bispo do Rosario permanece na então Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, Rio de Janeiro, de 1939 a 1989, ano de sua morte.
Lá, descosia os uniformes de brim azul e com os fios bordou obras de arte, que chegaram a representar o Brasil na mais importante exposição internacional, a Bienal de Veneza, após a morte dele, em 1995, por coincidência – ou sincronicidade, Ano Internacional da Tolerância, no calendário da Organização das Nações Unidas.
Com grande delicadeza, a autora reproduz, na obra, algumas belíssimas citações do artista, inclusive sua definição de loucura: “O louco é um homem vivo guiado por um morto”.
Muitas interpretações dessa afirmação são possíveis. De fato, somos todos regidos por nosso inconsciente e, se disso não tivermos ciência, seremos guiados por um morto, como loucos.
Daquela definição e de outras se nota a veia poética do Bispo do Rosario: “Os doentes mentais são como beija-flores: nunca pousam, ficam a dois metros do chão”.
Uma bela definição de paixão, quiçá de amor, lato sensu.
Vale recordar que essa transcendência espiritual ocorria em meio às práticas “terapêuticas” mais atrasadas, como a lobotomia, o eletrochoque e as impregnações medicamentosas.
A propósito, a autora cita o teatrólogo francês Antonin Artaud, vítima de aplicações em seguidas de eletrochoques, o qual, em carta a seu psiquiatra, desabafou: “O eletrochoque me desespera, apaga minha memória, entorpece meu pensamento e meu coração, faz de mim um ausente que se sabe ausente e se vê durante semanas um busca do seu ser, como um morto ao lado de um vivo que não é mais ele, que exige sua volta e no qual ele não pode mais entrar. Na última série, fiquei durante os meses de agosto e setembro na impossibilidade absoluta de trabalhar, de pensar e de me sentir ser”.
A similitude entre as definições de loucura, por ambos, é de molde a confirmar o inconsciente coletivo de Jung, pois é certo que o Bispo jamais tivera acesso consciente à obra de Artaud.
Outro francês, o filósofo Michel Foucault, em Chomsky – Foucault, Natureza Humana Justiça vs Poder ajuda a identificar os tendões supostamente terapêuticos do autoritarismo, para melhor combatê-lo: “Provavelmente não basta dizer que por trás dos governos e do aparelho de Estado existe uma classe dominante: é preciso revelar o local da ação, os espaços e as formas como essa dominação é exercida.
Além disso, como essa dominação não é simplesmente a expressão em termos políticos da exploração econômica, ela é seu instrumento e, em larga medida, a condição que a torna possível, a eliminação de uma é alcançada por meio da compreensão exaustiva da outra. Bem, se não conseguimos identificar esses pontos de apoio do poder de classe, corremos o risco de permitir que eles continuem existindo e observar esse poder de classe se reconstituir mesmo após um aparente processo revolucionário”.
A essa reflexão, Chomsky agrega: “…é importante explorar as esferas da lei que estão formuladas de maneira adequada e, então, talvez agir diretamente contra aquelas esferas da lei que simplesmente ratificam um sistema de poder”.
Nada melhor do que a arte para encontrar os caminhos da utopia em meio às trevas.
A recente premiação de Bacurau como melhor filme estrangeiro, pela associação de críticos de Nova York, confirma essa tese. O filme libertário, anticolonialista e anti-imperialista de Kleber Mendonça Filho nos honra a todos os brasileiros e brasileiras, que um dia daremos aos tiranos de hoje o mesmo fim que tiveram aqueles da película.
No país do Bispo, de Kleber e de Sônia Braga, os ditadores de ontem e de hoje passarão, como um “sonho ruim”, na lírica de Cazuza; seu castigo será ficarem, para sempre, de fora do “maior show da Terra”, como Caetano Veloso bem apreendeu. Não é pouco.
Boas Festas!
 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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