Opinião

As ameaças ainda não esvaziaram, mas seu ocaso tampouco está distante

‘As trevas relutam sempre em partir, porque sabem nada poder com as luzes’

O ex-juiz Sergio Moro e o ex-presidente Jair Bolsonaro. Foto: EVARISTO SÁ/AFP
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“Quando perguntavam a Sócrates de onde ele vinha, respondia que era um cidadão do mundo. Ele se considerava um cidadão do universo.”
Cícero

Um dos episódios mais obscuros da Farsa Jato foi a prisão do almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, principal responsável pelo programa nuclear brasileiro, que permitiu ao País dominar toda a cadeia produtiva da energia nuclear – por meio da tecnologia da ultracentrifugacão.

No Irã, com coautoria de Israel, o império assassina cientistas responsáveis pelo desenvolvimento nuclear. Como somos considerados mero quintal, ou “jardim da frente”, nas palavras de Biden, aqui os cientistas foram presos, poupando os algozes, induzindo-os ao suicídio. Não somos mais o País do futebol, mas estávamos nos tornando o de juízes ladrões.

Até na metrópole, a situação não é menos grave: a congressista negra Cori Bush teve seu carro recentemente baleado em Saint Louis. Ela defendera a redução do orçamento das polícias.

Na verdade, os detentores de prisões e de armas – policiais e militares – agem como poder moderador, exclusivamente na medida em que as sociedades estejam polarizadas do ponto de vista socioeconômico. Na proporção em que essa situação arrefece, perdem a “legitimidade” que as oligarquias temerosas dos conflitos sociais lhes conferem ao arrepio da lei e da legalidade constitucional.

O histórico das intervenções militares no Brasil confirma essa tese. Por isso, esperar daqueles segmentos a promoção da justiça e da paz é simplesmente augurar o irrealizável, desejar que defendam a própria extinção, o que não configura expectativa razoável.

A esse respeito, valem as reflexões de Ivo Andric, diplomata iugoslavo e Prêmio Nobel de Literatura 1961, em um de seus livros mais importantes, Ponte sobre o Drina (editora Grua): “As pessoas que não trabalham e nada realizam na vida perdem a paciência facilmente e cometem erros quando julgam o serviço alheio.”

No posfácio àquela obra, Aleksandar Jovanovic recorda-nos que em Crônica de Travnik, outro importante romance de Andric, encontra-se belíssima reflexão sobre o desafio da alteridade: “Ninguém sabe o que significa nascer e viver sobre a borda existente entre dois mundos, conhecer e entender a um e a outro, e nada poder fazer para que eles se expliquem um ao outro e para que se aproximem, amar e odiar um e outro, hesitar e manter-se fiel a vida inteira, ter duas pátrias sem ter nenhuma, estar em casa em toda parte e permanecer estrangeiro para sempre (…) Esses são seres da fronteira, espiritual e física, de uma linha negra e sangrenta traçada após um desentendimento grave e absurdo entre as pessoas, entre criaturas divinas, entre as quais não deve haver nem pode haver fronteiras. Essa é aquela borda entre o mar e a terra, condenada a movimento e intranquilidade eternos. Esse é o terceiro mundo em que se depositou toda a maldição que se seguiu à divisão da terra em dois mundos.”

No belo romance do escritor gaúcho Menalton Braff, Além do Rio dos Sinos (editora Reformatório), um sentimento de conforto, de vitória sobre o medo nos vem ao encontro, em tempos ainda tão difíceis para nós: “Agora eles sabem que a sobrevivência é possível, difícil e trabalhosa, mas possível. As ameaças, que pareciam vir de qualquer lado, não fazem mais sentido. Esvaziaram.”

No caso brasileiro, ainda não esvaziaram, mas seu ocaso tampouco está distante.

Em O imperialismo sedutor, de Antonio Pedro Tota (editora Companhia das Letras), o autor nos recorda: “A Política de Boa Vizinhança foi obra do governo de Franklin Delano Roosevelt… E na 7ª Conferência Pan-Americana, realizada em Montevidéu em 1933, Cordell Hull, o secretário de Estado, disse: ‘Nenhum Estado tem o direito de intervir nos assuntos internos e externos de qualquer outra nação’… Apesar das declarações do presidente e do secretário, houve intervenções veladas e não armadas. O exemplo mais evidente foi o caso de Cuba.”

Mais recentemente, o caso do Brasil também fica cada dia mais evidente.

Na obra citada, o professor Tota esclarece como os mecanismos de manipulação da opinião pública nacional para os interesses do império foram se transmutando ao longo do tempo e ao sabor das conveniências: “A agência criada em 1940, sob o nome de Office for the Coordination of Commerce and Cultural Relations between the American Republics, que em 1941 mudou seu nome para Office of the Coordinator of Inter-American Affairs e, em 1944, passou a chamar-se Office of Inter-American Affairs, foi finalmente extinta por um ato do presidente Harry Truman, em maio de 1946. A ‘fábrica de ideologias’ havia sido fechada. Não tinha mais serventia.”
Sim, o terreno aqui fora lavrado com o joio, que aprisionaria o trigo, pelo lawfare, a manipulação do direito com fins político-partidários.

Sumariando a obra, o professor Tota aclara: “Os meios de comunicação…foram usados pedagogicamente para americanizar o Brasil. Houve um projeto de americanização, quer dizer, ações deliberadas e planejadas visando a um objetivo. A existência desse projeto não exclui o processo de americanização conduzido pelas forças de mercado. Ao contrário, há evidências da imbricação dos dois processos.”

As trevas relutam sempre em partir, porque sabem nada poder com as luzes.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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