Amarílis Costa

Advogada, doutoranda em Direitos Humanos na Faculdade de Direito USP, mestra em Ciências Humanas, pesquisadora do GEPPIS-EACH-USP, diretora executiva da Rede Liberdade.

Opinião

Arreda homem, que aí vem mulher: um panorama da violência política de gênero no Brasil

Como mulheres e cidadãs, sabemos da importância de estarmos representadas, mas ainda é alto o preço que pagamos para ocupar esses espaços

Arreda homem, que aí vem mulher: um panorama da violência política de gênero no Brasil
Arreda homem, que aí vem mulher: um panorama da violência política de gênero no Brasil
Mulheres fazem passeata no Dia Internacional da Mulher - 8M, por direitos e contra a violência e o feminicídio, no centro do Rio. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
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Em 8 de março de 2018, Dia Internacional da Mulher, a vereadora Marielle Franco fez um corajoso discurso na Câmara Municipal do Rio de Janeiro sobre a baixa representatividade feminina na política e sobre as muitas dificuldades enfrentadas pelas mulheres em todos os aspectos de suas vidas.

A certa altura, um homem que assistia da galeria começou a fazer intervenções em defesa da ditadura. Foi quando Marielle proferiu uma fala que se tornaria emblemática: “Não serei interrompida, não aturo interrupção dos vereadores desta Casa, não aturarei de um cidadão que vem aqui e não sabe ouvir a posição de uma mulher eleita Presidente da Comissão da Mulher nesta Casa”.

Naquele dia, não conseguiram cessar a fala de Marielle. Mas, poucos dias depois, nove tiros de fuzil interromperam sua vida.

Desde então, muitas outras mulheres em cargos políticos continuam enfrentando interrupções e diversas formas de violência, que vão desde ofensas que atentam contra a honra e abusos de cunho sexual até as microagressões diárias que muitos ainda tentam normalizar. Infelizmente, exemplos para cada uma dessas situações não são difíceis de encontrar.

Em 2015, em protesto contra o aumento da gasolina, começaram a circular pelo país carros que traziam em volta da entrada do tanque de combustível adesivos com a imagem da então presidenta Dilma Rousseff de pernas abertas, fazendo alusão ao estupro pela mangueira de combustíveis . Sabemos que a violência sexual é uma das formas mais cruéis de subjugo e tortura. Jamais, nem antes nem depois, algum presidente homem foi alvo deste tipo de protesto, nem mesmo Bolsonaro, em cujo mandato o litro de gasolina chegou a custar 10 reais em alguns estados.

Cinco anos mais tarde, em 2020, a deputada estadual Isa Penna (PSOL) teve o seio apalpado pelo também deputado Fernando Cury (Cidadania) em pela sessão na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). O ato explícito de importunação sexual foi filmado e exibido por veículos de imprensa de todo o país. Ainda que Cury tenha tentado se defender afirmando ter apenas “abraçado” a deputada, acabou tendo o mandato suspenso por 180 dias, em decisão inédita do Colégio de Líderes da Casa. Em seu mandato anterior, como vereadora, Isa Penna já havia sofrido violência verbal dentro de um elevador da Alesp.

No ano seguinte, Erika Hilton, Carolina Iara e Samara Sóstenes, três parlamentares do PSOL, sofreram ameaças em uma mesma semana na cidade de São Paulo. A primeira foi perseguida por um homem que tentou invadir seu gabinete de trabalho e as outras duas passaram por episódios de disparos de tiros na frente de suas casas. Todas se sentiram intimidadas e relacionaram as ameaças ao fato de serem representantes políticas negras e transgênero. A Casa Legislativa não forneceu reforço de segurança para nenhuma das parlamentares vítimas de violência.

A deputada Mônica Seixas (PSOL), também uma mulher negra, sofreu episódios de machismo e racismo em sequência, na mesma Alesp, no ano de 2022. Foi chamada de louca pelo deputado Gilmaci Santos, do Republicanos, e, no dia seguinte, ouviu o deputado Wellington Moura, do mesmo partido, afirmar que iria colocar um cabresto em sua boca. Moura foi condenado pela Justiça em junho deste ano por crime de violência política de gênero.

Declarações e atitudes machistas e desrespeitosas são comuns entre os parlamentares. O deputado federal Nikolas Ferreira foi condenado a indenizar a também deputada Duda Salabert (PDT) por se recusar a tratá-la pelo pronome feminino. O deputado estadual Arthur do Val (Podemos) afirmou em áudio que mulheres refugiadas de guerra na fronteira entre a Ucrânia e a Eslovênia eram “fáceis” por serem pobres.

A deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL) teve o microfone cortado por três vezes pelo deputado tenente-coronel Zucco (Republicanos), presidente da CPI do MST, em uma clara evidência de que as mulheres ainda continuam sendo repetidamente interrompidas e silenciadas no exercício de seus mandatos.

Ainda que as mulheres sejam a maioria do eleitorado do país e estejam presentes na liderança e na articulação de organizações comunitárias e de representação da sociedade civil, sub-representação das mulheres em posição de poder nos espaços institucionais persiste. O retrato do parlamento ainda é a imagem do homem branco, cisgênero, heterossexual de meia idade.

A violência política de gênero está caracterizada como crime desde 2021, e as eleições municipais deste ano serão as primeiras sob a vigência da nova legislação. Os exemplos citados neste texto mostram a amplitude de formas sob as quais esta prática pode se apresentar, o que exige um olhar atento e constante da Justiça para o tema.

Desde que 26 mulheres entre um total de 559 parlamentares participaram da elaboração da Constituição Federal de 1988 até hoje, a cada vez que pegamos nossos títulos eleitorais para votar, sabemos que estamos lutando para garantir e ampliar direitos fundamentais como igualdade de gênero, licença maternidade, acesso a creches, direitos reprodutivos, trabalhistas e à titularidade de terras. Mas isso tudo foi e ainda é conquistado em meio a incontáveis violências contra aquelas que se dispõem a participar ativamente da política.

Quer aterrorizar um homem? Apenas diga que ele será tratado como uma “mulherzinha”. Nenhum homem deseja ser tratado como uma mulher e experimentar as sensações de viver abaixo do topo da pirâmide social e ser vulnerável a toda sorte de violência, vilipêndio, humilhação, subjugo, assédio e perversidade que um ser humano pode experimentar. Se houver a intersecção dos marcadores de gênero, raça, classe e aspectos da diversidade sexual, os resultados serão ainda mais avassaladores.

Como mulheres e cidadãs, sabemos da importância de estarmos representadas em todas as instâncias políticas, mas também sabemos como ainda é alto o preço que pagamos para ocupar esses espaços. É tempo de usarmos todos os mecanismos legais para impedir e punir atos de violência de gênero, de LGBTfobia e de racismo. A garantia dos direitos das minorias políticas é base fundamental para que se afirme e se consolide a democracia.

No final do dia, ainda somos o país das mulheres que não vivem, apenas aguentam. Mas a estranha mania de ter fé na vida escrita pelo poeta continua aqui. Vamos permanecer em vigília, protegendo umas às outras e a nós mesmas. Lutaremos pelo fim da violência política de gênero e pela efetivação do Estado democrático de direito no Brasil. Afinal, é preciso ter sonho sempre.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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