Jamil Chade

Jornalista, correspondente internacional, escritor e integrante do conselho do Instituto Vladimir Herzog

Opinião

cadastre-se e leia

Armados até os dentes

Corrida armamentista no planeta ameaça secar recursos para áreas sociais

Armados até os dentes
Armados até os dentes
Míssel disparado pelo líder da Coreia do Norte no Mar do Japão em 23 de dezembro de 2022 — Foto: AFP
Apoie Siga-nos no

O mundo vive sua maior corrida armamentista desde o fim da Guerra Fria, congelando não apenas as esperanças de paz, mas também os investimentos para combater a fome, a pobreza, e para lidar com o desafio climático. Em 2024, pelo décimo ano consecutivo, houve alta nos gastos militares, para 2,7 trilhões de dólares. Só os EUA despenderam 900 bilhões.

Obsceno, o valor revela que não existe falta de dinheiro no mundo para enfrentar a desigualdade social ou crises humanitárias. O que existe é uma ausência de vontade política.

Segundo cálculos do International ­Peace Bureau, com o preço de apenas um tanque de guerra atualmente em uso, 26 mil seres humanos poderiam ser tratados contra a malária. Com apenas um porta-navios, uma área equivalente a três territórios da Costa Rica poderia ser reflorestada. Com apenas 2% do orçamento militar, a ONU teria como distribuir alimentos, remédios e abrigos a mais de 200 milhões de indivíduos em zonas de crise humanitária.

Portanto, quem morre de fome hoje morre assassinado.

Nos últimos dois anos, Gaza, a guerra na Ucrânia e a instabilidade internacional deram os argumentos de que os governos procuravam para instalar um rearmamento sem freios. Não bastasse, o desembarque de Donald Trump no poder deu outra dimensão à corrida. Além de anunciar novos planos no setor militar, Trump conseguiu pressionar a Otan a garantir um compromisso de que cada um dos integrantes da aliança aumentasse as despesas para 5% do PIB. E o mundo acaba de descobrir a segunda parte do pacto. Com recursos europeus, Washington venderá armas para a aliança militar que, por sua vez, fornecerá mísseis, tanques e munições a Kiev. “Bilhões de dólares em armas chegarão aos ucranianos”, afirmou Trump.

A previsão é de que, em uma década, os europeus vão investir tanto dinheiro ou mais em suas forças armadas quanto aplicavam na época em que seus domínios na África e na Ásia davam sinais de esgotamento e que lançavam campanhas dispendiosas para manter colônias.

Os gastos militares da França atingiram 7,6% do PIB em 1953. Portugal gastava 4% do PIB ou mais em suas forças armadas antes do fim da ditadura do “Estado Novo”, em 1974. No ano passado, esse número foi de 1,5%. No caso da Grécia, a última vez que o país gastou mais de 5% do PIB em defesa foi durante a década de 70, quando era comandado por uma junta e diante do conflito com a Turquia sobre o Chipre. A Alemanha apenas se mudou da marca de 5% do PIB em gastos em 1963, no auge da Guerra Fria. Um aumento de apenas 2 pontos porcentuais no caso dos alemães significaria que eles destinariam 100 bilhões de euros a mais aos militares. Em um país onde o número de aposentados cresceu 50% entre 1991 e 2022, as decisões sobre a redução dos benefícios não seriam necessariamente simples.

A invasão da Ucrânia pela Rússia provocou um aumento drástico de 30% nos gastos militares da União Europeia entre 2021 e 2024. No ano passado, eles atingiram um valor estimado de 326 bilhões de euros, em torno de 1,9% do PIB da UE. As mesmas tendências são registradas nos EUA, Rússia e China. Todos terão, para os próximos anos, um incremento dos orçamentos militares.

No caso dos países em desenvolvimento e da ONU, a pergunta que se faz não é apenas quanto à segurança do planeta. O temor é que não haja mais espaço fiscal para que essas mesmas nações destinem recursos à luta contra a pobreza, a fome ou o desmatamento.

Mesmo a presidência brasileira da COP30 indicou temer que, com esses novos gastos, governos que tradicionalmente deram recursos à questão climática cheguem em Belém do Pará, no fim do ano, resistindo a fazer qualquer acerto que signifique um compromisso de financiamento da transição energética. Pelo Acordo de Paris, ficou previsto que o mundo desenvolvido repassaria 100 bilhões de dólares aos países em desenvolvimento por ano. O dinheiro nunca chegou, apesar de representar menos de 5% dos gastos globais em armas. Mas nem isso está garantido.

O governo do Reino Unido anunciou recentemente a redução dos gastos com ajuda humanitária em 0,2% do PIB, para permitir o aumento dos gastos militares. O presidente da França, Emmanuel ­Macron, anunciou que o orçamento militar do país aumentará em 64 bilhões de euros, abrindo rumores entre a oposição de que tal projeto significará cortes no social.

Ao optar pelo caminho armamentista, democracias e regimes autoritários sinalizam que a tese de que a paz social seria o melhor caminho para evitar as guerras está perto de ser abandonada. Com um número inédito de armas, o mundo fica mais perigoso, mais inseguro e mais imprevisível. •

Publicado na edição n° 1371 de CartaCapital, em 23 de julho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Armados até os dentes’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo