

Opinião
Armados até os dentes
Corrida armamentista no planeta ameaça secar recursos para áreas sociais


O mundo vive sua maior corrida armamentista desde o fim da Guerra Fria, congelando não apenas as esperanças de paz, mas também os investimentos para combater a fome, a pobreza, e para lidar com o desafio climático. Em 2024, pelo décimo ano consecutivo, houve alta nos gastos militares, para 2,7 trilhões de dólares. Só os EUA despenderam 900 bilhões.
Obsceno, o valor revela que não existe falta de dinheiro no mundo para enfrentar a desigualdade social ou crises humanitárias. O que existe é uma ausência de vontade política.
Segundo cálculos do International Peace Bureau, com o preço de apenas um tanque de guerra atualmente em uso, 26 mil seres humanos poderiam ser tratados contra a malária. Com apenas um porta-navios, uma área equivalente a três territórios da Costa Rica poderia ser reflorestada. Com apenas 2% do orçamento militar, a ONU teria como distribuir alimentos, remédios e abrigos a mais de 200 milhões de indivíduos em zonas de crise humanitária.
Portanto, quem morre de fome hoje morre assassinado.
Nos últimos dois anos, Gaza, a guerra na Ucrânia e a instabilidade internacional deram os argumentos de que os governos procuravam para instalar um rearmamento sem freios. Não bastasse, o desembarque de Donald Trump no poder deu outra dimensão à corrida. Além de anunciar novos planos no setor militar, Trump conseguiu pressionar a Otan a garantir um compromisso de que cada um dos integrantes da aliança aumentasse as despesas para 5% do PIB. E o mundo acaba de descobrir a segunda parte do pacto. Com recursos europeus, Washington venderá armas para a aliança militar que, por sua vez, fornecerá mísseis, tanques e munições a Kiev. “Bilhões de dólares em armas chegarão aos ucranianos”, afirmou Trump.
A previsão é de que, em uma década, os europeus vão investir tanto dinheiro ou mais em suas forças armadas quanto aplicavam na época em que seus domínios na África e na Ásia davam sinais de esgotamento e que lançavam campanhas dispendiosas para manter colônias.
Os gastos militares da França atingiram 7,6% do PIB em 1953. Portugal gastava 4% do PIB ou mais em suas forças armadas antes do fim da ditadura do “Estado Novo”, em 1974. No ano passado, esse número foi de 1,5%. No caso da Grécia, a última vez que o país gastou mais de 5% do PIB em defesa foi durante a década de 70, quando era comandado por uma junta e diante do conflito com a Turquia sobre o Chipre. A Alemanha apenas se mudou da marca de 5% do PIB em gastos em 1963, no auge da Guerra Fria. Um aumento de apenas 2 pontos porcentuais no caso dos alemães significaria que eles destinariam 100 bilhões de euros a mais aos militares. Em um país onde o número de aposentados cresceu 50% entre 1991 e 2022, as decisões sobre a redução dos benefícios não seriam necessariamente simples.
A invasão da Ucrânia pela Rússia provocou um aumento drástico de 30% nos gastos militares da União Europeia entre 2021 e 2024. No ano passado, eles atingiram um valor estimado de 326 bilhões de euros, em torno de 1,9% do PIB da UE. As mesmas tendências são registradas nos EUA, Rússia e China. Todos terão, para os próximos anos, um incremento dos orçamentos militares.
No caso dos países em desenvolvimento e da ONU, a pergunta que se faz não é apenas quanto à segurança do planeta. O temor é que não haja mais espaço fiscal para que essas mesmas nações destinem recursos à luta contra a pobreza, a fome ou o desmatamento.
Mesmo a presidência brasileira da COP30 indicou temer que, com esses novos gastos, governos que tradicionalmente deram recursos à questão climática cheguem em Belém do Pará, no fim do ano, resistindo a fazer qualquer acerto que signifique um compromisso de financiamento da transição energética. Pelo Acordo de Paris, ficou previsto que o mundo desenvolvido repassaria 100 bilhões de dólares aos países em desenvolvimento por ano. O dinheiro nunca chegou, apesar de representar menos de 5% dos gastos globais em armas. Mas nem isso está garantido.
O governo do Reino Unido anunciou recentemente a redução dos gastos com ajuda humanitária em 0,2% do PIB, para permitir o aumento dos gastos militares. O presidente da França, Emmanuel Macron, anunciou que o orçamento militar do país aumentará em 64 bilhões de euros, abrindo rumores entre a oposição de que tal projeto significará cortes no social.
Ao optar pelo caminho armamentista, democracias e regimes autoritários sinalizam que a tese de que a paz social seria o melhor caminho para evitar as guerras está perto de ser abandonada. Com um número inédito de armas, o mundo fica mais perigoso, mais inseguro e mais imprevisível. •
Publicado na edição n° 1371 de CartaCapital, em 23 de julho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Armados até os dentes’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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