Educação

Aprovação automática agita a corrida dos estados pelo Ideb

Quem confunde indicador educacional com ‘qualidade’ ou garantia de direitos ou nunca pisou numa sala de aula, ou almeja extrair alguma vantagem política dos resultados

Aprovação automática agita a corrida dos estados pelo Ideb
Aprovação automática agita a corrida dos estados pelo Ideb
Créditos: Tânia Rego / Agência Brasil
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Nos últimos dias, a imprensa noticiou a criação de regras de aprovação “flexíveis” para o Ensino Médio nas redes de ensino de, ao menos, três estados: Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul. Não é coincidência que isso ocorra precisamente às vésperas da aplicação das provas do Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica).

A média das taxas de aprovação em cada ano escolar de uma determinada etapa da educação básica (como o Ensino Médio) compõe o indicador de rendimento (P) do Saeb, fator multiplicativo que, com a nota média nos exames de Português e Matemática (N), gera o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) de escolas, estados e municípios: o produto N x P. Isso significa que, se o indicador N de uma rede de ensino permanecer igual ao do ciclo avaliativo anterior, uma elevação nas taxas de aprovação fará o Ideb crescer.

Os estados do Rio Grande do Norte e do Rio de Janeiro tiveram as menores taxas de aprovação no Ensino Médio do país, e ficaram nas duas últimas posições no “ranking” do último Ideb. Ao mesmo tempo, as sete redes estaduais com melhor Ideb do Brasil em 2023 também eram aquelas com as taxas de aprovação mais altas.

A fim de defender seus estratagemas para o inflacionamento dos índices, as secretarias estaduais de educação acusam os críticos às políticas de aprovação automática – em particular, professores e seus sindicatos – de serem reacionários e adotarem uma postura punitiva com os alunos. Afinal, reprovar em massa não beneficia ninguém.

O debate sobre a reprovação escolar é longo e complexo. Exige pensar no “fracasso escolar” como produto da própria política educacional e nas falhas do Estado em garantir o direito à educação. A vasta maioria do professorado tem consciência disso. As implicações escolares e extraescolares das avaliações são debatidas há décadas na literatura educacional e em todos os programas de licenciatura dignos do nome.

Já os secretários de educação e governadores, estes parecem muito menos inclinados a debater as causas e efeitos da reprovação escolar ou as consequências pedagógicas de suas políticas de aprovação automática. Seu propósito primordial é outro: elevar os indicadores educacionais de seus estados para que possam – secretários e governadores – ostentar uma posição de destaque no pódio da educação nacional. Os “milagreiros” do Ideb.

Burlar as avaliações oficiais e inflacionar indicadores, como já escrevi nesta coluna, é um trabalho quase artesanal, pois nem tudo o que “funciona” em um local serve para outro. A aprovação automática é mais um desses mecanismos de burla.


O Ideb é divulgado bianualmente entre os meses de julho e agosto, sempre às portas das eleições municipais e estaduais. É isso o que mobiliza as secretarias de educação a, no final de cada ano anterior ao das eleições, correr atrás dos números que revelarão a “melhoria” da educação pública sob a sua competentíssima gestão.

O problema dessa lógica concorrencial é que, para que alguns escalem a cordilheira do sucesso, outros terão que descer alguns degraus rumo ao abismo. Cria-se, assim, uma situação de quase-mercado, da qual derivam as políticas de bonificação e punição de educadores que, nos últimos anos, vêm degradando as condições de trabalho nas escolas a níveis assustadores, em severo prejuízo da formação dos estudantes.

Tamanho afã tem levado o governo de São Paulo, por exemplo, a falsear as avaliações estaduais de forma desavergonhada, chegando ao cúmulo de estimular o falseamento das avaliações pelas próprias escolas.

Com tanto conhecimento científico disponível sobre falseamento de indicadores educacionais, não é admissível que gestores públicos ou aspirantes a “especialistas” em educação defendam esta patética numerologia do Ideb. Quem confunde indicador educacional com “qualidade” da educação ou com garantia de direitos educacionais, das duas, uma: ou nunca pisou numa sala de aula, ou almeja extrair alguma vantagem política dos resultados nas avaliações no próximo ciclo eleitoral.

A despeito de um certo moralismo na cobertura de imprensa, que reforça a visão da aprovação em massa como sinônimo de permissividade educativa, as críticas a essas repentinas políticas da aprovação automática lançadas pelos estados são justas. Quais são as políticas estruturais dos governos para reduzir a repetência nas redes estaduais sem obrigar escolas e professores a “ajustarem” planilhas de notas? Seremos sempre obrigados a rediscutir esse tema às vésperas da avaliação nacional, sem vislumbrar quaisquer mudanças nas práticas dos governos frente a esses deploráveis ranqueamentos do Ideb?

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