Aldo Fornazieri

Doutor em Ciência Política pela USP. Foi Diretor Acadêmico da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), onde é professor. Autor de 'Liderança e Poder'

Opinião

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Aprendiz de ditador

A “Abin paralela” de Bolsonaro é um clássico exemplo de como os regimes autoritários costumam se estruturar à sombra do Estado formal

O vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ). Foto: Sergio Lima/AFP
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Todos os países têm órgãos de inteligência que não se limitam a colher e analisar informações, praticam também espionagem. Nos países democráticos, busca-se estabelecer algum tipo de controle sobre esses organismos, mas ele é sempre precário. Nos EUA existem duas dezenas de órgãos de inteligência. O mais conhecido é a CIA. Ela costuma operar no exterior e, frequentemente, é acusada de cometer crimes e vários tipos de violações e ilegalidades. O Comitê de Inteligência do Senado é o principal mecanismo de controle das atividades da CIA e de inteligência em geral.

No Brasil, tem-se a Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI), formada por integrantes da Câmara e do Senado. Além de fazer a fiscalização e o controle externo dos organismos que exercem essa atividade, a CCAI pode propor políticas de inteligência e contrainteligência e examinar a atuação do Executivo. O colegiado padece, porém, dos mesmos limites inerentes às capacidades de controle e fiscalização encontrados pelas suas similares em todas as democracias. Já nos regimes ditatoriais, essa capacidade de fiscalização e controle fica perto do zero.

As ditaduras não se limitam a usar o aparato de inteligência do Estado, criam também organismos paralelos. Há um duplo objetivo: ter maior liberdade para exercer atividades criminosas e fugir a qualquer responsabilização futura por conta da inexistência de registros formais. A “Abin paralela” do governo Bolsonaro inscreve-se nesse contexto. A formação, mesmo que incipiente dessas estruturas paralelas de espionagem, tinha o indisfarçável objetivo de preparar um golpe no Brasil.

Os estudiosos do assunto indicam que esse modelo de duplicação dos organismos de inteligência e espionagem foi desenvolvido pelos regimes totalitários, particularmente pelo nazismo. Nos regimes totalitários e nas ditaduras consolidadas, as estruturas paralelas e informais são ocupadas por membros ideologicamente comprometidos dos movimentos e dos partidos dos líderes ditatoriais. Outros integrantes controlam também as estruturas formais do Estado, mas as atividades estratégicas são exercidas pelos membros das estruturas paralelas.

Dessa forma, os movimentos e os partidos ocupam as estruturas formais, mas não se fundem com elas. Estas mantêm uma autonomia operacional para executar seus fins criminosos e assegurar a perpetuação do ditador de plantão no poder.

As estruturas do Estado oficial passam, então, a executar as decisões tomadas no Estado paralelo. Durante a pandemia de Covid-19, para citar um exemplo, as políticas sanitárias adotadas por Eduardo Pazuello não eram definidas no âmbito do próprio Ministério da Saúde, chefiado pelo general, e sim nas estruturas paralelas criadas por Bolsonaro e seu círculo próximo. Um manda, o outro obedece. Eis a fórmula clássica desses arranjos ilegais do poder.

Da mesma forma, a Abin formal era controlada pela “Abin paralela”, assim como a Polícia Federal formal era controlada, em várias atividades, por uma “PF paralela”. Bolsonaro agiu também para controlar o Estado Maior das Forças Armadas.

Os regimes totalitários e ditatoriais nunca confiam plenamente nas estruturas formais do Estado porque, de alguma forma, elas estão submetidas a algum tipo de crivo da opinião pública interna ou internacional. Esses regimes precisam de uma fachada, visando manter um mínimo de legitimidade no cenário internacional.

Mais nas ditaduras do que nas democracias, os altos cargos do Estado são ocupados por pessoas incompetentes, seja porque são bajuladores do governante ou lhe prestaram serviços, seja porque é preciso acomodar necessidades particulares de grupos. Mas o ditador precisa ter liberdade de agir quase ilimitada. Para viabilizar essa eficácia, geralmente criminosa, monta-se, acima e por trás das fachadas visíveis do Estado, toda uma estrutura clandestina e secreta para operar os desígnios do poder sem controles.

A grande sorte do Brasil é que Bolsonaro e seus asseclas foram incompetentes em estruturar um partido ou movimento orgânico capaz de operacionalizar, pública e clandestinamente, o golpe para implantar uma ditadura. Serviram-se de familiares, amigos, milicianos e alguns militares ambiciosos e incompetentes. Valeram-se também de influenciadores, pastores, políticos deste ou daquele partido e de empresários com vocação autoritária. Não existiam, porém, uma estrutura organizacional e um comando centralizado. Um movimento apenas de redes digitais é capaz de mobilizar, mas não é capaz de concretizar a consumação de um golpe exitoso. Para isso é preciso ter uma estrutura organizacional sólida e força militar ou paramilitar disponível. •

Publicado na edição n° 1296 de CartaCapital, em 07 de fevereiro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Aprendiz de ditador’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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