Opinião

Apesar de Bolsonaro, Witzel e Crivella, o Rio de Janeiro continua lindo

De lá, chegam as boas e as más notícias, em profusão as segundas. A notícia boa, ótima, é que o Bar Luiz não fechará mais as portas

O Cristo Redentor de Michelangelo (Wikimedia Commons)
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O Rio de Janeiro, apesar do presidente, do governador e do prefeito, continua lindo. A cidade mantém-se como símbolo do Brasil, na beleza e, infelizmente, na selvageria dos dirigentes.

De lá, chegam as boas e as más notícias, em profusão as segundas. A morte de Ágatha, a notícia mais triste e violenta. A ausência de conclusão do inquérito sobre as mortes de Marielle e Anderson e as ligações entre os prováveis assassinos e a família presidencial horrorizam, cada dia mais.

No entanto, precisamos levantar todos os dias. Nem sempre nos damos conta do sacrifício que isso pode representar, sobretudo em tempos tão bicudos como os atuais.

Eu não conseguia admitir isso para mim mesmo, até que um jornalista estrangeiro, ao final de entrevista em off, me disse: “Posso te fazer uma pergunta?”. Eu disse sim. Ele perguntou: “Como é para você acordar todos os dias?”

Eu quase fui às lágrimas. Estava sentado no chão do apartamento, por conta do carregador do celular. Senti com mais força o “húmus” da nossa frágil condição humana.

Respondi que, de fato, não era fácil. Ver o trabalho de décadas ser destruído em frente dos olhos era quase sobre-humano. Agradeci imensamente a pergunta, que demonstrou não apenas humanidade, mas também carinho, afeto e cumplicidade.

Com efeito, o que assistimos é a tentativa de desumanização do outro. Uma regressão de seis séculos, anterior ao Iluminismo, até mesmo ao Renascimento, em que os valores da universalidade, da diferença e da valorização da alteridade começaram a ser exaltados.

Tudo isso, sob o mecenato da Igreja Católica, que não se dava conta da extensão daquele movimento, principalmente no berço dele, a Itália.

Ali, fora ironicamente liderado, na pintura, por três artistas de sexualidades totalmente contemporâneas, mas revolucionárias para a época – e até hoje de escassa aceitação pela extrema direita: Leonardo da Vinci, Michelangelo Buonarroti e Michelangelo Merisi “da Caravaggio”.

Bar Luiz, um clássico do Rio de Janeiro (Foto: k.caiazzo)

Graças à minha família e ao estado brasileiro, pude estudar nas melhores instituições de ensino, muitas delas públicas e – apesar da ditadura – com grande qualidade pedagógica.

Entretanto, devo confessar que não entendera a extensão do Renascimento até morar em Roma, trabalhando na embaixada do Brasil (não por indicação…).

Um domingo, estava levando uma amiga francesa para passear pela cidade, em que eu vivia há poucos meses.

Entramos na Igreja de Santa Maria sopra Minerva (construída sobre o antigo templo da deusa da sabedoria), que tem raridades como um elefante de Bernini na praça externa; o corpo de Santa Catarina de Siena, doutora da Igreja e padroeira da Itália, no altar; o de Fra Angelico e duas esculturas de Michelangelo.

Ao observarmos a imagem que esculpiu do Cristo Redentor (mais uma sincronicidade junguiana com o Redentor do Corcovado), chamou-nos atenção, em primeiro lugar, uma “fralda” de metal colocada sobre as partes pudendas do Filho de Deus, claro, havia antecessores da senhora Damares no meio eclesiástico.

Nem esse moralismo primário tolhe a beleza da obra e a força da superação, da sublimação, que transmite.

Com ambas as mãos, mas olhando para outro horizonte, o Cristo segura a cruz – símbolo da paixão, morte e ressureição; uma corda, da qual se libertara; e uma vara, na verdade, um bambu.

As descrições referem-se aos três instrumentos com que sofrera a tortura, dos quais Ele se libertara. Mas o bambu não nos convenceu como explicação.

Ao retornarmos a casa, consultamos um dicionário de símbolos (recomendo aos que visitarem Roma).

Para nossa surpresa, todos os três símbolos representavam a ascensão, em civilizações do Oriente Médio e da Ásia, anteriores ao cristianismo, inclusive a cruz, símbolo de ascensão no Oriente Médio. A corda também o era, em culturas orientais, assim como o bambu, que, tendo nove nós – como o esculpira Michelangelo – representa o nirvana, atingido após a superação dos nove chacras.

Ficamos absolutamente surpresos e entendemos, em um lampejo, o Renascimento: a celebração do homem e da mulher; das culturas, do respeito ao outro, portador do divino tanto quanto qualquer um de nós, rico ou pobre, nobre ou prostituta cobrador de impostos ou pescador.

 

O incrível é que esses gênios, vigiados por censores bem mais cultos do que os toscos locais, conseguiram utilizar o mecenato da Igreja para, com o próprio dinheiro dela, descreverem pictoricamente a espiritualidade nas diferentes tradições, culturas e segmentos socioeconômicos.

Esperança, portanto! As trevas sempre sucumbirão à luz, inclusive as da Cidade Luz, que acaba de conceder a cidadania honorária a Luiz Inácio Lula da Silva, reconhecendo-lhe a condição de preso político.

Não esqueçamos: a padroeira de Curitiba é Nossa Senhora da Luz! Mais uma bela sincronicidade!

Por fim, voltemos à Cidade Maravilhosa: a notícia boa, ótima, é que o Bar Luiz não fechará mais as portas!

Após 132 anos de ótimo chopp e de salada de batata inigualável no Rio de Janeiro, a luz na Rua da Carioca continuará brilhando, mesmo depois das lojas fecharem e do Centro voltar à decadência noturna das ausências do que fora outrora. Resiste o Bar Luiz (Fritz, até a Segunda Guerra Mundial), junto com as Confeitarias Cave e Colombo.

Luzes que simbolicamente persistem em meio às trevas do arbítrio, da violência, da ignorância.

São como o amor em Shakespeare: o sol que brilha depois da chuva – que nos seja de verão esta.

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