Opinião
Apelo à responsabilidade
Caso Jair Bolsonaro siga no poder, a sociedade brasileira será responsável pelo que vier a ocorrer, da degeneração da democracia à escalada da barbárie
Na reta final da eleição presidencial, em que se vê ainda boa parcela de indecisos, é preciso que olhemos um pouco para trás e para o presente, para entendermos o que, de fato, está em questão e o que queremos como sociedade e como nação. É necessário que examinemos as marcas do governo Bolsonaro e o que elas significam de uma forma mais ampla.
Comecemos pelos episódios recentes da fala pedófila e inescrupulosa do atual presidente em relação às meninas venezuelanas e ao completo desatino de Roberto Jefferson, que disparou um fuzil e jogou granadas em policiais federais. Ambos personificam a barbárie e a selvageria de condutas não regradas ou próprias de uma sociedade anômica, incompatível com qualquer forma de civilização ou ordem social.
No campo econômico, a barbárie foi instalada com a redução de fato do salário mínimo ao se determinar o seu reajuste com base na previsão de inflação, e não na inflação real, uma política salarial que falhou mesmo durante a ditadura militar, sob o governo de Castello Branco, porque comprimia de tal forma o poder aquisitivo dos trabalhadores que se mostrou economicamente insustentável.
Somado à redução do poder de compra dos salários, o corte de 87% do fornecimento de leite para famílias em extrema pobreza no interior do Nordeste e em Minas Gerais desvela a face da selvageria deste governo também no âmbito social. Hoje, no Brasil, um terço da população passa fome e mais da metade dos brasileiros está em situação de insegurança alimentar.
Muito já se falou sobre a postura absolutamente irresponsável e criminosa de Bolsonaro na condução da pandemia, inclusive comprovada pela CPI da Covid. Mas é preciso que se destaque que esta não é só uma percepção de críticos de seu governo. O Brasil foi o país que pior gerenciou a pandemia de Covid-19 no mundo, de acordo com um estudo conduzido por um grupo de pesquisadores da Austrália e publicado pelo Lowy Institute.
Outras pesquisas apontam que quatro em cada cinco mortes pela doença no País poderiam ter sido evitadas se o governo federal tivesse adotado outra postura e ao mesmo tempo apressado a aquisição de vacinas. Em movimentos de total refuta ao bom senso, para dizer o mínimo, o que Bolsonaro promoveu foi, de certa maneira, um incentivo à contaminação, ao desdenhar de práticas de proteção contra o vírus e promover aglomerações.
O negacionismo de Bolsonaro só não teve efeitos mais dramáticos devido à iniciativa do governo de São Paulo e do Instituto Butantan de acelerar a produção da Coronavac, que foi distribuída para todo o Brasil, e de outros governadores que também chamaram para si a responsabilidade que o presidente da República não assumiu.
A destruição das estruturas de educação e saúde foi outra marca degenerativa importante da administração de Bolsonaro. E, para além disso, o bolsonarismo teve condutas de degeneração da própria sociedade brasileira, que está cindida pelo ódio, marcada por uma divisão política nunca antes vista. O Brasil sob Bolsonaro sofreu e sofre um ataque diário e sistemático à democracia. Mesmo quando o bolsonarismo eventualmente acerta na crítica a elementos do sistema democrático, essa crítica se faz não para melhorá-lo, mas para destruí-lo. Trata-se de um jogo perverso de apontar equívocos para sugerir e implementar medidas não em benefício das instituições, mas que as coloquem a serviço do autoritarismo.
Por todas essas razões, seria uma total inconsequência manter este governo no poder. É preciso chamar a cidadania à responsabilidade na recondução de uma normalidade. Na Alemanha e na Itália, os regimes totalitários não brotaram do nada, foram implementados e mantidos com aval da população. As sociedades desses países foram corresponsáveis pela implementação daquele modelo desumano de poder, pelas mortes nos campos de concentração e pelos genocídios da Segunda Guerra Mundial.
Da mesma forma, caso Bolsonaro permaneça no poder, a sociedade brasileira, em sua maioria, será responsável pelo que vier a acontecer, pelo aprofundamento da degeneração da democracia e do Direito e pela escalada da barbárie. O voto na chapa Lula e Alckmin, no próximo domingo, é antes de tudo uma convocação ao dever de cidadania, de preservação de uma sociedade civilizada. Não se trata de uma disputa entre esquerda e direita, mas de uma espécie de plebiscito para que se escolha entre democracia e autoritarismo. O que está em jogo nesta eleição, como bem alertou o grande escritor Mia Couto, é a defesa da própria ideia de humanidade. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1232 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE NOVEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Apelo à responsabilidade “
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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