Opinião

Aos que prezam a liberdade, a democracia e a justiça, o que resta fazer?

A coragem de resistir é a superação do medo, a certeza na inexorável, mesmo que não seja reta, vitória do bem sobre o mal

O presidente Jair Bolsonaro, ao lado do ministro Abraham Weintraub e do secretário Roberto Alvim Foto: Reprodução/Facebook)
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Ecce exiit qui seminat, seminare. Diz Cristo que “saiu o pregador evangélico a semear” a palavra divina. Bem parece este texto dos livros de Deus. Não só faz menção do semear, mas também faz caso do sair: Exiit, porque no dia da messe hão-nos de medir a semeadura e hão-nos de contar os passos. O mundo, aos que lavrais com ele, nem vos satisfaz o que despendeis, nem vos paga o que andais.

Padre Antônio Vieira.
Sermão da Sexagésima (domingo anterior ao domingo de carnaval), pregado na Capela Real, no ano de 1655.

Muitas vezes, o desespero nos assalta.

Em um mundo que vai rolando – cada vez mais rápido – para a auto-destruição, não poderia ser diferente.

Entretanto, a esperança tem de ser construída; passo a passo; tijolo a tijolo; com avanços e retrocessos.

Uma das fontes para a esperança pode ser a história.

Ao ler os “Sermões” do Padre Antônio Vieira, da editora L&PM, recordei que de 1580 a 1640 Portugal esteve sob o domínio espanhol, como atualmente o Brasil está sob o domínio dos Estados Unidos da América.

Após a morte do rei D. Sebastião na batalha de Alcácer Quibir, no norte da África, o rei da Espanha, Filipe II, reivindicou a sucessão à coroa portuguesa e obteve-a; transcorreram, então, 60 anos de humilhação portuguesa.

Em primeiro lugar, exercitemos a esperança de que a atual dominação estadunidense não dure tanto quanto aquela falsa “União Ibérica”, nome fantasioso daquela anexação.

Nesse sentido, convém notar o que bem disse a diretora do documentário selecionado para concorrer ao Oscar “Democracia em vertigem”, a cineasta Petra Costa: o golpe no Brasil não foi um evento isolado.

Com efeito, aquela ruptura democrática refletiu a colossal concentração de renda, em âmbito internacional e nacional: não por acaso, ocorreu no Brasil, o país com a pior, mais injusta e desigual distribuição de renda do planeta.

“…porque sair para tornar é melhor não sair”, disse no mesmo sermão o Padre Vieira, jesuíta como o Papa Francisco, que provavelmente nele também se inspirou para propor uma “Igreja em saída”.

Somos sociedades avessas ao sair, enfrentar, assumir compromisso, que, erroneamente, assimilamos a dependência, sujeição e submissão.

Não necessariamente o engajamento nos leva a similares dependências. A ética protege-nos desses abismos, levando-nos a estradas novas, a revisitar paisagens, a sermos capazes de novas e mais profundas leituras.

No momento em que o secretário de cultura do governo ilegítimo, certo Rodrigo Alvim, reproduz discurso do ministro da propaganda de Hitler, Joseph Goebbels, tendo ao fundo trilha sonora de Wagner – compositor favorito do “Fuhrer”, a ética tem de nos guiar para fora da trilha nazi-fascista em que Bolsonaro e seus milicianos tentam desencaminhar o país.

Vale observar que no mesmo dia dessa manifestação explícita de nazismo, o próprio miliciano chefe incitou o ódio contra pessoas de esquerda, desqualificando-as da condição humana, passo que incita a todo tipo de violência, na senda trilhada pela ideologia que o guia, o nazismo.

Aos que prezam a liberdade, a democracia e a justiça, o que resta fazer?

Resta desobedecer ao arbítrio, ao jugo, à injustiça.

“Desobedecer” é, de fato, o título do excelente livro do pesquisador francês Frederic Gros, editado no Brasil pela editora UBU.

Na obra, o autor indaga por que obedecemos, quando se tornam tão evidentes, numerosos e urgentes os motivos de revolta.

O autor traça um histórico da desobediência desde a antiguidade, passando por Etienne de la Boetie e Henry Thoreau.

Com base nisso, propõe a tese de que para a manutenção da democracia, faz-se mister que seja uma “democracia crítica”.

Por isso, enuncia: “…a democracia designa também uma tensão ética no íntimo de cada pessoa, a exigência de reinterrogar a política, a ação pública, o curso do mundo a partir de um “si político” que contém um princípio de justiça universal e, sobretudo, não é a simples “imagem pública” de si, em oposição ao eu interno. É preciso parar de confundir o público e o exterior. O si público é nossa intimidade política. É, em nós, poder de juízo, capacidade de pensar, faculdade crítica. É com base nesse ponto em nós que nasce a recusa das evidências consensuais, dos conformismos sociais, das ideias pré-fabricadas”.

Sinteticamente, complementa: “Nesse sentido, a democracia crítica não é um regime político entre outros, é a estruturação ética do sujeito político”.

Coerentemente, indaga: “…por que é tão fácil chegar a um acordo sobre o desespero da ordem atual do mundo, mas tão difícil desobedecer-lhe”.

Para tentar entender essa imensa dificuldade que temos em ver, julgar e agir contra o autoritarismo, o punitivismo e o desrespeito aos direitos básicos, talvez tenhamos de entender as técnicas de controle, manipulação e intimidação à disposição dos nazistas atuais, no Brasil e no mundo.

Elas vão desde a concentração dos meios de informação nas mãos de praticamente 6 famílias no Brasil (duas das quais – soubemos recentemente – são mantenedoras informais das contas privadas do secretário de comunicação do governo…); passando pelas ameaças contra a integridade física dos opositores – como o presidente ilegítimo reiteradamente faz; até a execução propriamente dita, como milícias e setores das polícias que o apoiam têm perpetrado.

Não é um quadro róseo, mas a coragem, vale lembrar, não é ausência de medo – que é a loucura.

A coragem de resistir é a superação do medo, a certeza – para os crentes, a fé – na inexorável, mesmo que não seja reta, vitória do bem sobre o mal.

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