Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Ao desdenhar livros didáticos, Tarcísio faz da escola um balcão de negócios

Suprimir o acesso dos filhos das classes pobres aos livros didáticos impressos só serve para aprofundar as desigualdades educacionais no País

Foto: Reprodução/Twitter
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Há muitos anos, tenho o hábito de ler os principais jornais do país logo cedo. Antes mesmo de acessá-los, penso: qual direito foi negado hoje? Qual afronta, qual artigo da Constituição Federal terá sido rasgado?

Nesta semana, mais uma vez, o Brasil ratificou que, mesmo com a derrota do inelegível nas urnas, o modus operandi do bolsonarismo, que legitima a barbárie como forma de vida, segue a todo vapor. Diante da chacina cometida por policiais no Guarujá, que se estendeu pela Baixada Santista e, até o momento, fez 16 vítimas, Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, não teve qualquer pudor em dizer: “Estou extremamente satisfeito com a operação”. Eu me senti enojada, ofendida, com essa fala. Imagino que qualquer pessoa com o mínimo de decência e humanidade tenha sentido o mesmo.

Além de não mostrar qualquer respeito pela Constituição, onde se lê que todo cidadão contará com a garantia de um julgamento justo e ninguém será submetido à tortura, nesta mesma semana, Tarcísio de Freitas institucionalizou a escola como um espaço de negação de direitos. Foi isso o que ele fez ao determinar que, a partir do 6.º ano do Ensino Fundamental, os alunos da rede estadual terão acesso somente a livros digitais.

A gestão do governador nascido no Rio simplesmente abriu mão de 120 milhões de reais ao decidir não participar do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), responsável pela compra de livros para as escolas com a verba do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), do MEC. Sem formação na área, o secretário de Educação, Renato Feder, que é um dos acionistas do grupo de controle da empresa de informática Multilaser, sentiu-se apto para dizer em entrevista à Folha de S.Paulo: “Eu e meus técnicos olhamos os livros do PNLD. A avaliação da Secretaria foi a de que eles perderam a qualidade, profundidade e conteúdo. Estão superficiais”.

Vale lembrar que Feder atuou como CEO da Multilaser por 15 anos, de 2003 a 2018, além de ter sido vice-presidente da empresa e presidente do Conselho de Administração. Em 2019, ele renunciou após assumir o cargo de secretário de Educação do governo de Ratinho Júnior (PSD) no Paraná. Em maio de 2021, tornou-se conselheiro da companhia, que assinou contratos no valor de 200 milhões de reais para fornecer notebooks e celulares para escolas estaduais de São Paulo, a dez dias para a posse de Feder como secretário de Educação, segundo reportagem do site UOL. O secretário prometeu que a Multilaser não participará de novas licitações do governo paulista para não haver conflito de interesses. Ah, então tá… De qualquer maneira, chama a atenção que um dos mais destacados representantes desse setor faça a opção radical de investir em equipamentos de tecnologia em detrimento dos livros, que viriam sem custos.

As decisões de Tarcísio de Freitas e os discursos de Renato Feder dão mostras do atual cenário da educação no país: governos e secretarias têm sido controlados por empresários, que querem transformar o ensino público em balcões de negócios altamente rentáveis.

Conforme afirmei em texto recente, infelizmente, veículos da mídia hegemônica também estimulam essa tendência, abrindo espaço em suas colunas e editoriais para engenheiros, administradores, coachs, que se sentem autorizados a apresentar “soluções” para a educação, refletindo somente os interesses de grandes grupos empresariais.

Suprimir o acesso dos filhos das classes pobres aos livros didáticos impressos só serve para aprofundar as desigualdades educacionais no País. Durante os quase dois anos da pandemia da Covid-19, em que o ensino presencial precisou ser substituído pelo remoto, ficou constatado que uma parcela significativa da população não dispõe de acesso a celulares, computadores, tablets e internet. Diante da impossibilidade de acompanhar as aulas por meio de recursos tecnológicos, o que se viu nesse período foi um aumento estrondoso de meninos e meninas fora da escola.

Na terça-feira, dia 1.º, o deputado estadual Carlos Giannazi (PSOL-SP) entrou com uma ação junto ao Ministério Público. O parlamentar solicitou a apuração da medida adotada por Tarcísio de Freitas e Renato Feder. Causa-me espécie que apenas um integrante da oposição tenha feito isso. O que se passa no estado de São Paulo é extremamente grave. Estamos diante da institucionalização da negação do direito humano à educação. Naturalizar, fazer vistas grossas a essa medida perversa é sequestrar o futuro de milhares de crianças e jovens deste país.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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