Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Antes dos arroubos golpistas, Sérgio Reis embalou a minha infância

‘Jamais imaginei que o cantor que encantou gerações desceria a um nível tão baixo’

Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados
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Cresci ao som do rádio, o que me proporcionou um conhecimento bastante vasto da música popular brasileira.

Dona Brasilina, minha avó, era ouvinte fervorosa da América, uma rádio católica. Às 15h, ouvíamos as mensagens de dom Serafim, que por muitos anos foi arcebispo de Belo Horizonte. Às 18h, a Ave Maria tocava os nossos corações. Às 21h, era a vez de rezar o terço, que parecia não ter fim. Um verdadeiro calvário para uma criança inquieta. Para agradá-la, mesmo a contragosto, eu permanecia ao lado dela até o último Pai Nosso.

Seu Nicolau Tolentino, meu pai, sempre teve predileção pelos programas jornalísticos. Às 6h30, o rádio era ligado religiosamente. Por meio da Itatiaia, tínhamos acesso às principais notícias do mundo político, social, cultural e econômico. Três décadas depois, a emissora que hoje pertence ao empresário Rubens Menin, também dono da CNNBrasil, continua sendo a preferida do meu pai.

Barrerito, Tonico e Tinoco, Chitãozinho e Xororó, Milionário & José Rico, Agnaldo Timóteo, Alcione, Joanna, Eliana de Lima, Luiz Caldas, Fagner, Leandro e Leonardo, José Augusto, Fábio Júnior e Roberto Carlos eram presenças constantes toda vez que a minha mãe sintonizava na rádio Atalaia, enquanto cuidava da casa. Sérgio Reis também. Sem sucesso, tento me lembrar de uma música que atualmente toque tanto quanto tocava “Panela velha”. Adorava repetir o refrão: “Não interessa se ela é coroa, panela velha é que faz comida boa…”. Os versos faziam minha mãe e minha avó dançarem, cantarolarem.

 

Eu que me acostumei a ouvir Sérgio Reis no rádio, acompanhei com muito encantamento sua participação na novela “O Rei do Gado”, que estreou na Globo em 1996, quando eu tinha 12 anos. Ele e Almir Sater deram vida à dupla Pirilampo e Saracura. O sucesso foi tamanho que os personagens da ficção lançaram dois discos. O primeiro deles trazia o hit “Cabecinha no ombro”, que eu também adorava cantar.

Já adolescente, passei a ouvir a Inconfidência, rádio estatal de Minas Gerais, dedicada à MPB. Foi nela que conheci Chico, Caetano, Gil, Elis, Milton e tantos outros mestres da música. Sérgio Reis e suas canções ficaram para trás. Eu o “reencontrei” na noite do dia 17 de abril de 2016, quando ele disse sim à abertura do processo de impeachment da então presidenta Dilma Rousseff, que comprovadamente não cometeu crime algum. Para o meu pai, fã inveterado do cantor, foi um choque. Em respeito aos leitores da Carta, opto por não reproduzir os palavrões proferidos pelo seu Nicolau ao se deparar com o voto do então deputado federal. Naquele momento, ele, que esteve em nossa casa por tantos anos, morreu para nós.

Nos últimos dias, acompanhei os arroubos golpistas de Sérgio Reis. Apoiador ferrenho do presidente Jair Bolsonaro, o cantor sertanejo divulgou vídeos convocando a população e os caminhoneiros a participar de um ato em defesa do governo no dia 7 de setembro, em Brasília. Segundo ele, a manifestação contaria com o apoio de representantes do agronegócio e dos transportes de cargas. Não demorou muito para que o ex-político fosse desautorizado, desmentido, humilhado por quem ele achava serem seus aliados.

A última pá de cal da longeva carreira de Sérgio Reis se deu com o vazamento de um áudio em que o cantor octagenário ameaçava invadir o Supremo Tribunal Federal, “quebrar tudo e tirar os caras na marra”, caso o Senado não aprovasse o voto impresso, proposta sepultada pela Câmara dos Deputados uma semana antes. Diante de tamanho absurdo, a Polícia Federal do Distrito Federal abriu um inquérito para investigá-lo.

Em meio a tudo isso, vieram notícias de que Sérgio Reis, “defensor da família”, de seus “valores” e apreciador do autoritarismo, deve mais de 600 mil reais ao Fisco, como também estaria envolvido com atividades ilegais em terras indígenas. Angela Bavini, companheira do cantor, saiu em defesa do marido, dizendo que ele estava com problemas de saúde em razão da má repercussão do caso, o que não me comoveu nem um pouco.

Na manhã desta sexta, 20, a pedido da Procuradoria-Geral da República, o ministro do STF Alexandre de Moraes autorizou uma operação de busca e apreensão no endereço de Sérgio Reis, com vistas a apurar eventuais crimes contra o Estado Democrático de Direito na incitação aos atos programados para o Dia da Independência do Brasil.

Na minha meninice, jamais imaginei que o cantor que embalou a minha infância e encantou gerações desceria a um nível tão baixo. Penso agora em uma expressão bastante popular nas redes sociais: que “morte horrível”, Sérgio Reis.

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