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Anistia e Constituição

O Congresso não pode outorgar a si próprio a condição de guardião máximo da Carta Magna

Anistia e Constituição
Anistia e Constituição
O ex-presidente Jair Bolsonaro. Foto: Mateus Bonomi/AFP
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O Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento das denúncias formuladas pela Procuradoria-Geral da República contra o ex-presidente Jair Bolsonaro pelos, dentre outros, crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado. Por essas razões, intensificaram-se as discussões relacionadas à concessão de anistia no Congresso. Ou seja, pretende-se atribuir ao Legislativo a determinação dos limites, bem como a extensão e o alcance, da nossa Constituição, substituindo o STF em seu papel de intérprete final e guardião.

Se, de um lado, a realização do Estado constitucional implica a preservação da esfera de livre decisão política do legislador, ele obriga a conformidade com a Constituição. É no espaço de tensão entre esses dois princípios que a análise da constitucionalidade da anistia deve ocorrer.

Rememoremos que a reação do Tribunal do Estado à decretação do Estado de Emergência na Prússia pelo presidente do Reich, em resposta ao “domingo sangrento” de 1932, abriu caminho para a nomeação de Adolf Hitler como chanceler do Reich e, mais adiante, para a ascensão plena do nazismo. Questionada a competência do presidente do Reich, o Tribunal do Estado sucumbiu-se ao reconhecimento dos poderes do chefe do Executivo (caso “Preussen versus ­Reich”) no que veio a ser conhecido como o “Preussenschlag de 1932”. A decisão foi no sentido de que o ato político praticado pelo chefe do Executivo era insindicável pelo Judiciário. Algum tempo depois, Hitler valeu-se do mesmo dispositivo constitucional para, após o incêndio do ­Reichstag, em 1933, implantar o totalitarismo. Não é preciso explicitar os conhecidos desdobramentos que se seguiram, os quais marcaram, com tintas de sangue, a história da civilização contemporânea.

Ao Judiciário cabe, nas democracias contemporâneas, a interpretação última da ordem jurídica. Em países como os latino-americanos, caracterizados por Constituições analíticas, diversas decisões sobre a vida em comunidade e os comportamentos humanos ocorrem no âmbito da jurisdição constitucional.

Pela primeira vez na nossa história, militares, ministros, um ex-presidente da República e outros servidores públicos da alta administração foram julgados por tentativa de golpe de Estado. Até então, prevaleceram impunidade, cegueira deliberada e anistia. Sem que haja margem para tergiversações ou de suposta necessidade de pacificação, a finalidade da pretensão responsabilizatória não deve ser estritamente punir: precisamos deixar claro para as próximas gerações que a sociedade brasileira rechaça ataques violentos à Constituição e à democracia.

Rememoremos que Bolsonaro proliferou desinformações quanto ao processo eleitoral e às urnas eletrônicas. Além disso, o ex-presidente jamais reconheceu a vitória do presidente Lula nas eleições e estimulou atos antidemocráticos em frente aos quartéis. Também não podemos esquecer da ruidosa atuação da Polícia Rodoviária Federal com o intuito de impedir o exercício do direito ao voto, dos atos de terrorismo no Aeroporto Internacional de Brasília em dezembro de 2022 e do fatídico 8 de Janeiro de 2023, ocasião na qual símbolos dos poderes constituídos da República brasileira foram, sem precedentes na nossa história, desafiados.

As provas revelam a gravidade dos crimes cometidos contra a nossa democracia. Esses atos atingiram diretamente o coração do Estado Democrático de Direito. Não estamos falando apenas de discursos golpistas, mas de ações concretas, como planos de sequestro e assassinato de autoridades, que colocaram em risco a própria democracia. Se, antes, a palavra “golpe” pudesse, no âmbito das ciências humanas em geral, significar uma reprovabilidade do jargão político, agora é inequívoco que deve ser adotada para representar a prática de um crime contra as instituições democráticas.

Subvertendo a lógica constitucional, o Congresso não pode outorgar a si próprio a condição de guardião máximo da Constituição. Não podemos admitir a tentativa de deslegitimação do Judiciário e de esvaziamento do seu produto decisório por meio de uma pretendida anistia, sob pena de esvaziamento do seu compromisso irrenunciável com a democracia e com o Estado de Direito. Em suas condições e possibilidades, o pacto constitucional rejeita qualquer pretensão dessa natureza, mesmo que por iniciativa majoritária. •

Publicado na edição n° 1379 de CartaCapital, em 17 de setembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Anistia e Constituição’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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