

Opinião
Análise pós-eleição mostra campo progressista perdido (e sem medo de parecê-lo)
Fica patente a percepção da periferia de que são eles que financiam a ‘não-quebrada’ – mas que jamais terão acesso aos serviços públicos


“Para os romanos, o humor vem de humus, terra. O humor tem como pré-condição a humilitas, humildade. Ela pressupõe a coragem de descer à essência de sua própria humanidade. Viemos da terra, enquanto seres humanos. Devemos nos aceitar com tudo o que há em nós, também com tudo o que há de terroso, escuro e pouco admirável. Se eu tenho dois pés no chão e mantenho-me firme à terra, recebo tudo de forma um pouco mais serena. O humor pressupõe que eu me aceite com amor e que eu possa rir de minhas fraquezas humanas, pois elas fazem de mim um humano entre humanos, ligados à terra. Um posicionamento como esse é bom – para o corpo e para a alma”
Anselm Grün
Bem, perder as eleições municipais foi ruim, mas o pior viria depois…
As análises das razões da derrota são as mais disparatadas, indicando um campo progressista bastante perdido e — se isso é virtude — sem medo de demonstrá-lo.
No entanto, bastaria aos progressistas tomar um ônibus — ou trem — até a periferia e tudo ficaria claro (ou escuro, se o cenário fosse avaliado sob essas luzes).
Lá, faltam: pavimentação das vias, luz, escolas, creches, transporte público, segurança, praças, redes de abastecimento, postos de saúde, academias públicas, coleta de lixo e — não menos importante — beleza.
Se você tiver um papel de bala, terá de guardá-lo no bolso até retornar ao centro, pois na periferia não há lixinhos nas vias públicas.
Leve sempre um boné, pois lá tambem não há árvores e, portanto, sombras.
Sombrio é o cenário: casas sem pintura, amontoadas, sem jardins, cercas precárias, quase nenhuma flor, só mercadinhos pobres, esparsos, alguns bares também despojados.
Nessa ausência de Estado, por que os eleitores iriam votar?
Em Porto Alegre, os índices de abstenção foram de 31 e 40%, respectivamente no primeiro e no segundo turnos.
Fica patente a percepção da periferia de que são eles que financiam a não-quebrada, mas que jamais terão acesso aos serviços públicos pagos por eles.
Por que continuar?
Na quebrada, além disso, não estão presentes outras igrejas além das neopentecostais, que, únicas, provêm o apoio financeiro, psicológico e espiritual.
Nesse cenário, falar de cinemas, teatros ou outros espaços de socialização e lazer seria covarde, quase pornográfico.
Entretanto, o lazer não está inserido no artigo sexto da Constituição como um direito humano? Em que implica seu descumprimento? Em nada, aparentemente.
Se a Lei Máxima nada garante, para que votar?
Da mesma forma, o parágrafo único do artigo quarto, da mesma desrespeitada Constituição, estabelece como prioridade da política externa brasileira a integração regional.
Como temos cumprido esse preceito? Brigando com a vizinha Venezuela? Com a pequena Nicarágua? Abandonando o paupérrimo Haiti que, ingenuamente, tanto esperou do Brasil?
Se o próprio Estado não respeita a Constituição, por que o fariam os cidadãos e cidadãs?
Nesse sentido, o que estamos aportando à comunidade internacional?
Parece, de fato, que estamos em débito, dependendo do presidente da Rússia para dialogarmos com nosso vizinho, a Venezuela, que, vale lembrar, é o primeiro parceiro comercial de Roraima e do Amapá.
Cabe a pergunta: contribuímos ou pesamos à comunidade internacional, ao negligenciarmos a interação regional?
No entanto, tudo sempre pode piorar.
Vivemos momento fortíssimo de recolonização por parte dos países do Norte.
O presidente da França, em visita ao Marrocos, acaba de apoiar a anexação do Sahara Ocidental pelo Marrocos: uma sentença de morte contra os saharauís, em troca de benefícios para as empresas francesas do ramo energético, entre outras transacionais.
A decisão imperial de Macron, vale observar, afronta todas as resoluções da ONU sobre a autonomia do Sahara Ocidental, mas está em linha com EUA e Alemanha…
Precisa desenhar?
Se os diplomatas franceses tivessem um mínimo (parece que não têm) de dignidade renunciariam imediatamente.
Vã esperança: o dinheiro e o poder compram a consciência, a ética e a moral. Não costuma falhar.
Em Viver com saúde de corpo e alma (editora Vozes), Anselm Grün nos alerta para uma vida que tem de ser participativa: “Há psicólogos que dizem: a doença dos nossos tempos é a ausência de envolvimento…A ausência de envolvimento nos exclui da vida. Já não conseguimos desfrutar de nossas vidas verdadeiramente. Nós nos fixamos em nós mesmos e nos isolamos das pessoas…”
Com efeito, precisamos refletir sobre a importância dos espaços coletivos, como os criamos e preservamos.
Sem espaços para encontrar, socializar, dialogar, como conseguir as mudanças que queremos?
Creio que deveríamos buscar, a um tempo, garantir mais e mais espaços de encontro, animados com cinema, teatro, literatura, brincadeiras, música, skate etc. Por outro lado, mais conselhos, indo da limpeza pública à política externa (até porque ambas estão precisando de faxina).
Participar, para não pirar.
Dessa forma — e para quem pode — aproveito para recomendar a nova livraria Macun, na Cidade Baixa, em Porto Alegre.
Ambiente delicioso, livros ótimos, café e comida ainda melhores. Um detalhe do refinamento: as mesas têm abajur para a leitura, algo que nem o café da maior livraria do globo, a Foyles, em Londres, tem — e apesar de seus mais de seis milhões de volumes.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.
Leia também

Tiozões brancos tentam culpar mulheres e LGBTs pelas derrotas nas municipais
Por Milton Rondó
Negócios privatizados e privados apagam as luzes das cidades
Por Milton Rondó
O momento da esquerda exige a coragem de propor a utopia como sonho realizável
Por Milton Rondó