

Opinião
Améfrica no poder
Nas falas de Francia Márquez estão as bases por uma nova ordem de governança, na qual compromissos coletivos são levados para dentro de espaços de decisórios


A nova fotografia do poder e os novos jeitos de fazer a gestão pública no Brasil e na América Latina vêm se concretizando com a chegada das mulheres negras e indígenas ao centro do poder político.
As mobilizações e lutas organizadas pelas mulheres negras quilombolas, indígenas, pescadoras artesanais e sócio-ambientalistas, pallanqueiras (termo para quilombolas nos países latinos de expressão espanhola), ativistas LGBT e muitas outras defensoras dos direitos humanos tomam conta das ruas do Equador, assim como mudam a fotografia do poder na Colômbia e vão ser decisivas nas eleições de outubro no Brasil.
Enquanto Gustavo Petro e Francia Márquez , eleita vice-presidenta, brilham e nos chamam a respirar de alívio na Colômbia, com a vitória inédita das esquerdas, no Brasil precisamos seguir fortes na mobilização política pela eleição de Lula e de um Congresso Nacional que garanta o seu governo.
O cenário que temos no País é de muita violência na política e de muita violência corroendo a sociedade, atingindo as identidades dos grupos secularmente em desvantagem, como as mulheres negras, os povos indígenas, as comunidades LGBTQIA+ e as juventudes periféricas. Tudo isso desemboca num grau limite de criminalização desses grupos, que só poderá ser superado a partir do momento em que esses grupos, eles próprios, tiverem acesso aos espaços de poder e decisão.
As lutas pela democracia popular no Brasil mobilizam as populações atingidas por barragens, pela mineração irregular e pelo descaso do Poder Público com os bairros e comunidades sem saneamento básico, educação e serviços de saúde de qualidade.
Faltam, para essa população, políticas focadas na primeira infância e nas mulheres. Quando Marielle Franco foi eleita, em 2016, ela, como vereadora da cidade do Rio de Janeiro, apresentou propostas como o Espaço Coruja, uma creche noturna pensada para que as mulheres possam deixar suas crianças em segurança enquanto terminam as longas jornadas de trabalho.
O primeiro Projeto de Lei (PL) de Marielle tinha o objetivo de fazer políticas de acolhimento a mulheres e meninas vítimas de violência sexual, destacando o direito de se interromper uma gestação resultante de estupro. Ao prever o direito ao aborto seguro, com atendimento humanizado para as vítimas desse tipo de violência, Marielle mudou a fotografia do poder e o jeito de atuação na Câmara Municipal da Cidade do Rio de Janeiro.
Com sua atuação, ela também nos mostrou o quanto esses projetos deslocaram a política do controle das elites econômicas, que se acham donas do dinheiro público. Com isso, elas puderam atender às necessidades reais e mais urgentes dos grupos sociais em profunda desvantagem na disputa pelos orçamentos dos municípios, dos Estados e da União. A agenda de Marielle Franco nos serviu como um bonito exemplo de como fazer um “orçamento mulher”.
Esta forma de fazer a política nos foi explicada, por Marielle, no texto Mulher, negra, favelada e parlamentar: resistir é pleonasmo, publicado no livro O Golpe na Perspectiva de Gênero (EDUFBA, 2018), organizado por Linda Rubim e Fernanda Argolo.
Esse texto evidencia que a nossa presença, de mulheres negras, indígenas e ativistas dos direitos LGBT, traz novas formas de fazer política e muitos compromissos coletivos para dentro dos espaços de decisão, elevando a qualidade da atividade parlamentar e mudando o trato com o poder.
Nas falas emocionantes de Francia Márquez estão as bases por uma nova ordem de governança, onde cabem todas e todos ninguéns e nadas; todas e todos os secularmente desrespeitados nas Américas.
Somos todas e todos herdeiros da pedagogia da desobediência ao racismo e ao patriarcado, matéria política de resistência ensinada por Dandara de Palmares, Carolina Maria de Jesus, Lelia Gonzalez, Luiza Bairros, Makota Valdina, Mãe Stella de Oxossi, Mãe Beata de Yemanjá, Sueli Carneiro e tantas outras anônimas guerreiras brasileiras.
Além disso, a possibilidade de novos sujeitos políticos terem direito a representação nos abre para novas maneiras de enfrentar uma situação cotidiana da violência nos espaços de poder contra as minorias políticas.
Estamos mobilizadas, estamos de pé, afirmando uma nova estética política, onde, com a radical imaginação política das mulheres negras brasileiras, em aliança com lutadoras como Francia Márquez, faremos as mudanças tão necessárias neste espaço que Lélia Gonzalez denominou Améfrica e também no Brasil. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1215 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE JULHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Améfrica no poder”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.