Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

AmarElo: um filme que nos ensina a sonhar

‘É preciso sonhar ainda que vivamos num país que mata gente preta sem constrangimento nenhum. É nóis por nóis’

Créditos: Reprodução Netflix Créditos: Reprodução Netflix
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De sonhar, eu entendo bem. Quando criança, sonhava em ser escritora, pois na minha cabeça, quem exercia essa profissão tinha uma vida boa, era uma pessoa importante. Na adolescência, enquanto lavava os banheiros das casas em que trabalhei, sonhava em escrever, fazer palestras. Sonhar era uma forma de esquecer as humilhações e a dureza dos dias, de acreditar que o meu estar neste mundo não seria daquela maneira para sempre. Hoje estou aqui, dedilhando esse texto. É a realização, a glória.

Talvez por isso, em minha caminhada como professora de escolas públicas periféricas, sempre houve espaço para os sonhos. Sim. Falar de sonhos também é conteúdo, é matéria importante, assim como Física, Geografia, Matemática, Ciências e todas as outras. Conforme já contei aqui em outra oportunidade, depois de levar para sala de aula a história do Fábio Constantino, um garoto negro que em 2017 foi aprovado em primeiro lugar para o curso de Medicina da UFRN, perguntei para uma turma do 7.º ano o que eles haviam aprendido com o percurso do futuro médico. Na ocasião, o Marcelo respondeu: “Eu aprendi que a pobreza não pode tirar da gente o direito de sonhar”. Foi uma das experiências mais emocionantes e impactantes de toda a minha vida.

Fiz essa introdução para falar de “AmarElo”, documentário protagonizado por Emicida que tem arrebatado corações e mentes. Muito já foi dito a respeito da obra primorosa produzida pela Netflix e dirigida por Fred Ouro Preto, mas pra mim é isso que fica: “AmarElo” é um filme que nos ensina a sonhar, algo tão importante e necessário neste momento em que parece não haver saída ou futuro.

Como Emicida evoca no início do filme, “a despeito do racismo estrutural brasileiro”, “AmarElo” nos ensina a sonhar com uma sociedade em que a população negra ocupe espaços que são vistos como verdadeiras capitanias hereditárias das classes mais abastadas, como as universidades, as câmaras, as assembleias e o Theatro Municipal de São Paulo, lugar que a avó do rapper paulistano adentrou somente aos 80 anos de idade para assistir à apresentação do neto.

“AmarElo” nos ensina a sonhar com uma educação antirracista, tal qual determina a Lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino da História e da Cultura Africana e Afro-brasileira em estabelecimentos de ensino públicos e privados. Uma educação em que crianças, jovens e adultos saibam quem foi Tebas, arquiteto negro que em 1750 construiu a torre da primeira Catedral da Sé, em São Paulo. Uma educação em que André Rebouças, Luiz Gama, Enedina Alves, Johnny Alf, Simonal, Candeia, Ruth de Souza, Abdias do Nascimento, Matheus Aleluia e tantos outros expoentes da cultura e do pensamento negro protagonizem atividades escolares, de modo a recontar as trajetórias e evidenciar a importância da comunidade negra na formação do país.

Nesse exercício de recontar, Emicida nos lembra do protagonismo juvenil nessa empreitada. Ao falar das vozes que emergem das periferias e ganham o mundo por meio das mídias sociais, o artista pontua: “Vencer é muito mais do que ter dinheiro. Esses jovens querem muito mais que serem famosos. Eles querem reescrever a história do Brasil”. A assertiva do filho da dona Jacira nos leva a sonhar com uma juventude viva, criativa e pulsante, direito que foi negado à pequena Ághata Felix, ao menino Miguel, ao garoto João Pedro, às primas Emily e Rebecca e, no último final de semana, aos jovens Edson e Jhordan Luiz, barbaramente executados com tiros na nuca, nas costas e na barriga durante uma aterrorizante ação policial em Belford Roxo, na Baixada Fluminense.

Quando Lélia Gonzalez entra em cena, somos convocados a sonhar, mas também à luta: “Vamos à luta para que a exploração e a opressão terminem neste país! Para que este país, além de vir a ser uma efetiva democracia racial, ele se torne efetivamente uma democracia”, diz a antropóloga mineira durante um evento em comemoração ao Dia da Consciência Negra, ocorrido provavelmente nos anos 1980.

Ao longo de uma hora e trinta minutos, é como se Emicida, por meio das imagens, depoimentos e sons que fazem de “AmarElo” uma obra definitiva, dissesse: É preciso sonhar, mesmo o Brasil tendo sido “o último país americano a abolir a escravidão”. É preciso sonhar ainda que vivamos “num país que mata gente preta sem constrangimento nenhum”.

“É nóis por nóis”.

** Faço uma pausa de duas semanas. Retorno a coluna no dia 8 de janeiro.

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