Maria Rita Kehl

Opinião

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Aliciador de tolos

Por que tantos se submetem a um líder tão desprezível como Marçal? Ainda no século XVI, La Boétie discorreu sobre o fenômeno da servidão voluntária

Aliciador de tolos
Aliciador de tolos
Foto: Reprodução/Redes Sociais
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Sim, aliciar tolos é o que faz o “mestre” sedutor diante do neurótico frustrado ou acovardado. O sujeito sem escrúpulos sabe fazer ­suas vítimas dançarem conforme a música que lhes impõe. A falta de escrúpulos, por sinal, é uma qualidade fascinante para o neurótico: sendo  ele um tanto covarde – Freud falava da “covardia moral do neurótico” –, tende a admirar os arrogantes, os abusadores, quando não os déspotas.

Observem: uso a palavra neurótico não como ofensa. Ela designa, na melhor das hipóteses, a maioria de nós. O neurótico “normal” – ou seja, grande parte das pessoas – é um sujeito que faz o possível para ser amado, para não ficar “por fora”, para adaptar-se. Sua vida pode ser descrita pelo conceito de servidão voluntária criado pelo filósofo francês Étienne de La Boétie. Seu pequeno livro, Discurso Sobre a Servidão Voluntária, foi publicado em 1574, depois da morte do autor. A obra em questão é centrada em uma pergunta aparentemente banal: “O que faz com que centenas ou milhares de pessoas aceitem se submeter a um líder, déspota ou rei?”

De acordo com La Boétie, a servidão voluntária é uma tentativa de o sujeito não ter de se responsabilizar por ­suas escolhas. É mais fácil cumprir as ordens de alguém em posição de poder, que o autor também chama de “o Um”, aquele que ocupa lugar diferenciado perante a multidão. Obedecer sempre parece mais seguro: Se algo der errado, a culpa não é minha, é de quem me obrigou. Se der certo, saio bem na fita.

Nos tempos atuais, a servidão voluntária pode descrever, por exemplo, a dinâmica entre influenciadores e influenciados. A forte presença de seguidores dos tais ­influencers – impressionante o fascínio de tantos por expressões em inglês – revela o espírito de rebanho de muita, muita gente que prefere submeter-se a um idiota cheio de arroubos demagógicos do que arriscar-se a errar (com chances de acertar) sozinho. Além disso, o termo ­influencer revela o despreparo político daquele que supõe que seu papel seja o de influenciar a sociedade que pretende governar.

Se bem-sucedida, a influência de ­Pablo Marçal ameaçaria o próprio laço social. Ele costumava dizer bobagens como “se você for bonzinho, não vai sobrar nada para você” ou “a oportunidade é o bônus de quem fez” (seja o que for, acrescento). Além de apelos infantis à onipotência: “Tudo o que você quiser, seu cérebro consegue adaptar”. Tentador, não?

Só que sua função, caso tivesse sido eleito, deveria ser o oposto daquela do influenciador. Se tivéssemos o azar de ter Marçal como prefeito, faríamos o possível para influenciá-lo, ou pressioná-lo, para que tentasse atender a demandas e necessidades de seus eleitores. É o governante que deve aprender a dançar conforme a música que a sociedade toca, e responder com o melhor que puder a partir disso. Não cabe a ele lançar “manuais” de conduta para quem quer ser bem-sucedido.

Chego ao tema central deste texto: o que fez com que milhares de pessoas votassem em Marçal para a prefeitura de São Paulo? Felizmente, não foi a maioria, tanto que o perigoso candidato não passou para o segundo turno. É um alívio, mas nada garante que, depois de receber uma quantidade considerável de votos, ele vá sair da cena política. Provavelmente influenciado por Jair Bolsonaro, há de tentar recuperar sua popularidade usando recursos ainda mais inflamados de sua baixa retórica.

Ainda bem que boa parcela dos eleitores paulistanos escolheu sair da área da sombra desse influencer de araque. Fico devendo, por falta de espaço, algumas conjecturas sobre a capacidade dos psicopatas em impressionar suas vítimas para depois subjugá-las.

P.S.: Vale lembrar que Guilherme Boulos ficou injustamente conhecido como alguém que tira as casas das pessoas para entregar aos pobres. Isso é mentira, ou fruto de enorme desconhecimento. É proibido por lei deixar imóveis desocupados à espera de valorização futura, ele deve cumprir a sua função social. Daí que os movimentos de luta por moradia apoiam a ocupação, por pessoas sem condições de pagar aluguéis, de imóveis vazios em São Paulo. No caso específico do MTST, no qual Boulos militou, apenas de terrenos abandonados e em situação irregular. •

Publicado na edição n° 1332 de CartaCapital, em 16 de outubro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Aliciador de tolos’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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