Sidarta Ribeiro

Professor titular de neurociência, um dos fundadores do Instituto do Cérebro da UFRN

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Algo nos une?

O enorme contingente de compatriotas desolados, em ambos os lados, revela o grau patológico de desconexão atingido pelos brasileiros

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Foto: EVARISTO SA/AFP
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O primeiro turno das eleições mostrou que o Brasil é hoje marcado por perspectivas radicalmente distintas, mas emoções semelhantes. Na segunda-feira pós-voto, ambos os lados administravam, cada um a seu modo, a profunda decepção por não haverem vencido no primeiro turno.

A ressaca bateu forte nos lulistas embalados por 57.259.504 votos, uma votação que, apesar de recorde, deixou escapar a vitória por 1,6 ponto porcentual. Entre bolsonaristas houve desânimo porque estavam iludidos pela promessa de 60% dos votos feita por seu líder supremo nas últimas semanas de campanha, no afã de mobilizar a base e minar a confiança nas pesquisas. Até mesmo alguns apoiadores de Ciro compartilharam o astral deprê, tendo confiado na ideia de que as pesquisas estavam completamente erradas e que a arrancada de seu candidato, em distante quarto lugar, seria de alguma forma possível.

Esse enorme contingente de compatriotas desolados revela o grau patológico de desconexão que atingimos no bicentenário da Independência. Mas é dessa vastidão de desejos desconexos que precisa emergir um mínimo denominador comum, algo que nos permita somar esforços num vetor de verdadeira e necessária transformação. O que pode, afinal, nos unir?

O fato de ao menos 84% da população se declarar cristã poderia sugerir a união em torno da partilha, do perdão e do amor ao próximo. Infelizmente, entretanto, a versão do cristianismo adotada pela teologia da prosperidade esquece os ensinamentos humildes, compassivos e tolerantes dos Evangelhos para se alinhar aos valores patriarcais, violentos e excludentes do Antigo Testamento. Nessa vertente religiosa, que caminha a passos largos para se tornar hegemônica no Brasil, a adoração a Deus transforma-se, muitas vezes, na idolatria do bezerro de ouro, como no escândalo dos pastores propineiros do MEC, com anéis brilhantes nos dedos e barras de metal amarelo nos bolsos dos paletós.

O fato de 51,1% da população ser composta de mulheres poderia sugerir a união em torno das mães e avós que gestaram, pariram e alimentaram todas as pessoas deste país. Não obstante, a maioria não defende políticas públicas de paridade de gênero, autonomia reprodutiva e investimento prioritário em creches e escolas públicas. Que país legaremos às nossas filhas e netas se não formos capazes de honrar e apoiar a maternagem?

O fato de haver mais de 305 povos originários e 274 línguas diferentes no Brasil poderia sugerir que nos uníssemos em torno da diversidade cultural, da regeneração dos biomas e da ocupação sustentável dos territórios. Em vez disso, quase metade da população acha irrelevante – ou mesmo engraçado – que Bolsonaro confesse, por pura curiosidade antropofágica, a disposição de “comer um índio”. É gente assim que massacra os povos originários há 522 anos, sem se dar conta da própria perversidade.

O fato de 56% se declararem pretos ou pardos poderia sugerir a união em torno de políticas de reparação e investimento na população que carrega na carne e na mente as consequências sociais, educacionais e sanitárias do racismo. Mas as mortes dos corpos africanos lançados ao oceano pelos tumbeiros, o suplício dos corpos indígenas caçados na mata como bichos, a dor das almas perdidas na calunga grande e subjugadas a ferro, fogo e laço, tudo isso parece ter se perdido no esquecimento que o povo faz de si próprio.

Ouvindo o excelente podcast Projeto Querino, entendi que o que verdadeiramente nos une como sociedade é a persistência do escravismo e de suas inúmeras sequelas. Num país governado desde o início por interesses predatórios e excludentes, marcado pela opressão sistemática das minorias vulneráveis e das maiorias minorizadas, a instrumentalização insensível da vida humana foi sempre a base da economia. Na primeira bandeira do Brasil independente, ramos de café e tabaco explicitavam a completa dependência do trabalho escravo. A escravidão foi mantida no País por quase todo o século XIX, porque a classe dominante achava impossível sobreviver sem ela.

Infelizmente, com honrosas exceções, ainda acha. No garimpo, no pasto, na lavoura, na fábrica, no escritório, na mesa, na cama, no banho, na casinha de sapé. O Brasil é a soma dessa enormidade de opressões e sua cura é a tarefa difícil e complexa que nos cabe. Nossa profunda cisão exige cada vez mais conversa entre os diferentes, não para silenciarmos injustiças, mas para aprendermos a divergir sem romper. Para que isso aconteça, os predadores terão de ceder. É isso ou não vai dar. É isso ou não vai ser. Agora é votar para ver. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1230 DE CARTACAPITAL, EM 19 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Algo nos une? “

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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