

Opinião
Além do Brasil
O mundo está de olho nos resultados da eleição. Vocês não estão sozinhos


Havia decidido escrever, mais uma vez, sobre lawfare. Desta vez tinha o intuito de convencer os brasileiros que me leem de que, ao contrário do que pensam, essa miserável arte de instrumentalizar o sistema judicial para fins políticos não é apenas um fenômeno latino-americano, mas também europeu. Entretanto, um amigo brasileiro mandou-me o Hino ao Inominável e o meu estado de espírito mudou. Deixemos de lado o lawfare que haverá outras oportunidades de falar nisso. Agora, o que realmente me apetece dizer é que o Brasil pode se queixar de muita coisa, menos dos seus artistas. A generosidade e a coragem com que tantos se entregaram ao seu dever cívico de fazer alguma coisa para mudar a situação política do País deixou-me comovido. Para ser sincero, deixou-me também com inveja, já que, aqui, na Europa, o engajamento político de intelectuais e de artistas consagrados não só deixou de ser costume como passou até a ser mal considerado socialmente. Tenho muitas saudades de quem põe de lado o cálculo e a carreira para se entregar sem hesitação àquilo que considera ser urgente para o seu país – tirar a extrema-direita do poder.
Ali, naquele pequeno filme, está muito do que gosto no Brasil e da simplicidade com que os brasileiros fazem coisas de grande beleza plástica. Mas o que me agradou sobretudo foi ver gente de diferentes sensibilidades políticas e de diferentes quadrantes sociais unirem-se num combate político que sabem ser importante para o seu futuro. Gostaria que soubessem que não estão sós. Gostaria que soubessem que a batalha política do Brasil é seguida um pouco por todo o mundo, porque tem a ver com a liberdade e a democracia. A derrota de Donald Trump não foi apenas uma questão norte-americana, tal como a derrota de Bolsonaro terá um significado político além do Brasil. Para nós, que não somos brasileiros, o que está em causa nesta eleição é o avanço ou o recuo da extrema-direita, da violência política e do autoritarismo radical – em todo o mundo. O que me emocionou no Hino foi ver os artistas brasileiros recusarem a solução fácil da indiferença, esse mal social tão próprio daqueles que lavam as mãos perante os problemas dos outros, para combater politicamente o mal que está à sua frente. Como cidadãos, não como espectadores.
Mas deixem-me explicar melhor por que digo que não estão sozinhos. Olhem para a Europa. Esta Europa para onde muitos brasileiros olham com admiração e onde acham que uma desgraça como o atual governo brasileiro nunca aconteceria. Bom, não só já aconteceu como foi o primeiro sítio onde aconteceu no século passado. E está a acontecer de novo. Na Suécia, nas eleições de domingo passado, o partido que se reclama de herança fascista transformou-se no mais votado da direita. Ainda não é o partido mais votado do país (os social-democratas continuam à frente), mas é a legenda mais votada da direita e, como o conjunto dos partidos da direita formam maioria no Parlamento, participará do próximo governo e terá a maior parte dos ministérios (cerca de 40%, segundo a imprensa). Depois, olhem um pouco mais para o Sul, para a Itália. No próximo domingo, haverá eleições e as pesquisas captam o favoritismo do partido “Irmãos de Itália”, representante do legado político de Mussolini. O mais provável é que haja uma maioria de direita que constituirá o governo, mas será dirigido por eles, pelos orgulhosos descendentes políticos do fascismo italiano. Parece anedota, mas a verdade é que o partido de Berlusconi é hoje o mais moderado da direita italiana. Parece incrível, mas está a acontecer. Se olharmos mais para o Leste, poderemos ver outros países cujos governos homenageiam abertamente o fascismo: Polônia, Hungria, Eslováquia e Eslovênia. Na Letônia, o partido de extrema-direita também faz parte do governo, como agora acontece na Suécia. Um pouco por toda a Europa a direita política está a fazer alianças com esses partidos, naturalizando as suas propostas, a sua retórica política e os seus comportamentos. Essa virada na cultura política europeia é uma das mais tristes realidades contemporâneas. Ainda mais triste para quem, como eu, sempre considerou o projeto europeu como o projeto político mais generoso dos nossos tempos. Tempos sombrios, estes.
Bem sei que pouco vos anima saber que o mal está espalhado. Mas é justamente a triste realidade que nos faz olhar, a nós europeus, para as eleições brasileiras com expectativa, interesse e confiança. A democracia é o governo do povo e, em última análise, é ao povo que compete a sua defesa. Pela minha parte, há muito tempo que acho que, quando o povo brasileiro falar, vai-se ouvir longe. Não, vocês não estão sozinhos. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1227 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE SETEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Além do Brasil “
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.