Cultura

Aldir Blanc foi o sonho de um povo na sua própria história

Samba, carnaval, macumba, a alma encantada das ruas, e a comida nacional ganhavam o quadro mais amplo com Aldir

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A complexidade de Aldir Blanc é grande, maior ainda por tudo nele ser tão claro e visível. Diretamente reconhecível, circulando pelos signos e experiência de uma vida popular em geral desprezada pela grande cultura, múltiplo nas imagens, concreto no dado social, ele aprendeu com a expressão festiva da alegria do povo e com os modos grandiosos da épica carnavalesca, e sua utopia, a constituir um povo brasileiro urbano e vivo, carioca, tão forte e nítido que fosse capaz de confrontar com sua diferença e singularidade a própria força hegemônica da indústria cultural, que envolvia a tudo no Brasil de 1970.

De todos os grandes poetas da música brasileira dos 70 ele é o que desde o bar, da rua, dos viadutos, das muvucas, das macumbas, dos corpos encantados da vida, buscava fundir sua poesia rica e informada à própria experiencia encarnada que o inspirava. O efeito era forte, feliz e, no entanto, estranho.

A experiência popular falava nele, sua generosidade não tinha limite, e ao mesmo tempo seus grandes afrescos a elevavam a um lugar de exigência que também parecia não lhe ser tão propriamente espontânea. Aldir era o povo, e era mais que ele. Ele era também um aprendizado, um artista didático do passado, da cultura e do porvir.

Sua intuição da forma e do país vinha desde o samba de Noel, um homem que coincidia com ele em muitos dados biográficos, mas seu compromisso tinha um que de Mário de Andrade. Amava e compreendia o Brasil como Chico Buarque, Caetano ou Gil, mas o cantava com o pé no chão de uma Ivone Lara ou Zeca Pagodinho. Com seu duplo João Bosco, reviveu Baden e Vinicius em pleno mundo da modernização feroz e violentamente conservadora da década da ditadura civil militar brasileira, achando modo próprio de enfrentá-la.

Fundamentalmente, ele fundiu a ideia modernista da experimentação e do elemento popular vivo na forma, com a ideia tardia e vital do que seria a “nossa revolução”, como dizia Sérgio Buarque, a nossa conversão mais profunda, nas ruas, nos bares, nas favelas, à democracia. Samba, carnaval, macumba, a alma encantada das ruas, e a comida nacional ganhavam o quadro mais amplo, somando a sua identidade com a vida à identidade por vir de um povo tão vivo quanto finalmente livre.

Usava a alegoria grandiosa e compreensível, como no carnaval, para apontar uma síntese social viva, que já estava lá, tão próxima, tão imanente à vida, ao encontro e aos corpos, mas, no país, também sempre tão distante, como é a razão de toda alegoria. A intuição da democracia tinha nele a forma das ruas, e a melancolia do absurdo da sua suspensão eterna, forçada sempre sabe-se lá de onde.

Foi um Exu, encarnado, do sonho de um povo na sua própria história. Salve as mulatas, as cachaças, as sereias, salve tudo o que pode se erigir como mundo desde as pedras pisadas do nosso cais.

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