Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

O barulho, o cheiro e as luzes da cerimônia do adeus

‘A primeira pessoa que vi morta foi o meu avô, em 1968, na sala da casa dele. O cheiro de flor e vela nunca saíram de dentro do meu nariz’

Mortes pelo coronavírus no Brasil. Foto: AFP
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Eu tinha muito medo da morte. Perder meu pai, minha mãe, ficar sozinho no mundo. A primeira pessoa que vi morta foi o meu avô, em 1968, na sala da casa dele. O cheiro de flor e vela nunca saíram de dentro do meu nariz. Acho que eram crisântemos que cobriam o corpo dele. Não gosto de crisântemos até hoje.

O meu pai também tinha medo da morte, mas brincava com ela. Trinta anos antes de nos deixar, comprou um túmulo no Parque da Colina. Escolheu bem o lote, debaixo de uma frondosa árvore, creio que UMA mangueira, bem perto da cantina.

– Se não for perto do bar, meus amigos nunca irão me visitar, dizia ele.

Sabia de cor o dia da morte de todos os amigos, amigas, parentes de perto e de longe, vizinhos, de todos os funcionários do Serviço de Meteorologia.

Não gosto de ver pessoas mortas, no caixão. Vi meu pai, minha mãe, o meu sobrinho Marcelo, o Geneton Moraes Neto e a última foi Dona Georgia, uma grega, amiga do coração. Ela parecia viva e para mim continua assim.

Não quero mais ver mortos.

Muitos amigos já se foram e o que guardo deles é a lembrança da vida, das piadas que contavam, dos títulos geniais que faziam, das edições primorosas, das conversas de copo e de cruz.

Eu tinha muito medo também de ambulância, da sirene vermelha rodando, da velocidade com que ela passava desviando dos automóveis, quase capotando. Aquela camionete branca me dava pavor, me lembrava sofrimento e morte. Ficava imaginando o que se passava ali dentro daquelas quatro paredes de lata ou ferro, sei lá.

Nunca entrei numa, nem por curiosidade. Mas sei lá dentro tem uma maca, balão de oxigênio, todos os apetrechos de primeiros socorros. Imagino que cheira a álcool, acetona talvez. Eu sempre achei que quando uma ambulância passa piscando, fazendo barulho, tem alguém à morte lá dentro.

Só me vem à cabeça um ataque cardíaco, enfermeiros fazendo massagem no coração, respiração boca a boca e a aflição do trânsito de São Paulo que não anda.

Ambulância faz sempre o caminho entre a vida e a morte. Pode até não chegar ao seu destino final, como pode.

Hoje, moro em frente ao Hospital Sorocabana, na Lapa. Improvisaram trinta e seis leitos de UTI exclusivos para enfrentar o coronavírus. Daqui de cima, fico observando o movimento delas lá embaixo, que vão chegando, uma atrás da outra. Hoje não é mais ataque cardíaco, agora é um vírus.

Ontem tinham quatro estacionadas na porta, com os motores ligados. Fiquei imaginando que esperavam leito para seus pacientes.

Vejo daqui de cima pessoas que passam na calçada em frente ao hospital com a máscara no queixo ou no bolso, indiferentes ao vermelho refletindo nas folhas das árvores. De noite, no Jornal Nacional, fico sabendo das 876 mortes do dia.

É quando o medo da infância volta.

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